039 A desistência de liderar
Sei lá, mas acho que tratar os não-vacinados como párias não vai motivá-los a vacinar-se
Démission é uma daquelas palavras estrangeiras que não têm uma tradução perfeitinha. É preciso contentar-se em traduzir esse vocábulo francês com algo como «desistência» ou «abdicação», embora o sentido do francês original fique entre o dessas duas palavras. Isso porque você pode démissioner sem no entanto abandonar formalmente um papel. Exemplo: um marido que simplesmente deixe de cumprir as funções que costuma cumprir, sem no entanto deixar de ser formalmente marido, terá démissioné. Ele simplesmente se retira e deixa rolar, indo embora de alma, mas não de corpo. A démission pode incluir o puro e simples abandono, pode antecedê-lo, mas não necessariamente.
Penso muito nessa palavra porque ela parece descrever boa parte das nossas crises atuais, que são crises de desempenho de papéis. A ambição de cumprir um papel é abandonada sem que o papel seja necessariamente abandonado. As pessoas querem casar-se sem ser maridos ou esposas, querem cargos sem encargos, prestígio sem mérito, e, no que me parece o capítulo mais recente da vasta démission ocidental, querem a democracia sem o ônus de convencer os outros. Nessa democracia, os líderes, por dispor de canetas e coturnos, não precisam efetivamente liderar.
Talvez eu seja apenas ingênuo por ter essa expectativa. Talvez eu esteja apenas me apegando à palavra «democracia». Talvez eu não queria aceitar que há muito tempo já vivemos sob o despotismo esclarecido porque tecnocrático. Mas o que posso fazer? Aprendi a admirar Nelson Mandela por ter levado a união à África do Sul.
Penso, ainda com a cabeça na França, na declaração de Emmanuel Macron ao jornal Le Parisien a respeito de seu enorme vontade de encher o saco dos não-vacinados: J'ai très envie d'emmerder les non vaccinés — e nem foi preciso assinar o jornal para ter acesso ao contexto, porque no dia seguinte o porta-voz da presidência francesa apresentou uma discussão a respeito de «quem enche o saco de quem» (qui emmerde qui), e o próprio Macron, sem sonhar em pedir desculpas, declarou que «assumia totalmente» a frase.
Na Assembleia Francesa, que discutia a institucionalização do passaporte sanitário (agora com o nome de «passaporte vacinal»), vários deputados disseram que votariam em algo que pretendesse «proteger a saúde» dos franceses, mas não em algo que pretendesse emmerder les français.
E eis aí toda a questão.
Se você tem certeza de que a vacina é uma solução indispensável (aviso ao leitor: tenho cá minhas duas doses da Pfizer, e levarei a terceira), então por que não se empenharia em convencer os outros da sua solução? Isso, é claro, pressupondo que você deseja viver na famosa «democracia».