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072 Vendas ocultas desde a fundação do mundo

Como gerar a impressão de um grande valor
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Desde o ano passado cogito bolar um curso em que explico o marketing a partir da teoria mimética. O motivo é simples: vi uma oportunidade. Depois de ler alguns livros de marketing, e até traduzir Marketing de Permissão e Storynomics para a H1, a editora d’O Novo Mercado, fiquei com a impressão de que, tirando algumas intuições de Seth Godin, nada do que eu lia explicava o que eu via.

O que eu via (e vejo), com a ajuda da teoria mimética, de Shakespeare, e dos grandes romances realistas do século XIX, é aquilo que tecnicamente seria chamado de «prestígio do modelo». Nos perfis de influenciadores, não vejo grandes técnicas de marketing: vejo pessoas (modelos) acumulando tanto prestígio junto aos seguidores que passam a poder vender qualquer coisa.

Eu matutava isso quando fui alertado por um aluno do curso Desejo & Orgulho (pois é, estou deixando um link de repescagem discretamente só aqui na newsletter) para a figura do marqueteiro Brian D. Taves no Instagram. Brian, com a palavra «idolatria», parece estar indo num sentido parecido ao meu. A diferença evidente (e não pretendo pagar os 20 mil reais que Brian cobra por suas mentorias para me informar melhor) é que ele, como falei, é um marqueteiro, e eu desejo essencialmente entender e explicar o que vejo. Nada de errado: ele é da prática, eu sou da teoria.

Pouco depois, ao preparar uma aula para o curso Desejo & Orgulho, me deparei com um trecho de René Girard em Coisas ocultas desde a fundação do mundo a respeito do «double bind» que explicava ao mesmo tempo o relacionamento entre Julien Sorel e Mathilde de la Môle em O vermelho e o negro e a relação de «idolatria», ou a relação em que o elemento mais importante é o prestígio do modelo (e, por tabela, o desprestígio do sujeito que segue o modelo).

René Girard, eu, e Olavo de Carvalho no Hotel Glória no ano 2000

O texto abaixo, um resumo daquilo que será uma das aulas do futuro curso de marketing e teoria mimética, é integralmente baseado em duas referências:

René Girard, Des Choses cachées depuis la fondation du monde, Livre III, Chapitre premier, E. Le Double Bind de Gregory Bateson, F. De la rivalité d’objet au désir métaphysique;

— Gregory Bateson, Steps towards an Ecology of Mind, «Towards a Theory of Schizophrenia»

1 O convite a imitar

Quando mostro uma xícara de café no meu story no Instagram, é como se eu dissesse: esta é uma xícara de café excelente, você não acha? Você então passa a desejar o meu café. Em alguns casos, pelas mensagens que recebo, até mesmo a minha bonita xícara artesanal de cerâmica.

E daí por diante: se você acompanha a vida de um rico, você deseja a vida daquele rico. Se acompanha a vida de um intelectual, deseja aquela vida de estudos. Mais importante, você deseja não os objetos específicos — a minha xícara de café, aquele carrão exatamente, a leitura de Milan Kundera em francês  —, mas principalmente certas qualidades. O prazer do café. A tranquilidade financeira. Alguma sabedoria.

Essa também é uma modalidade de imitação, uma modalidade «aquisitiva», que consiste em querer aquilo que o outro tem ou que o outro deseja.

Agora, nesta anotação breve, não pretendo insistir na imitação. Quem está familiarizado com a teoria mimética já a aceitou. Para quem não está, deixo apenas uma pergunta: não é incrível que falemos de influência só para evitar nos enxergarmos como… imitadores? Desde sempre — e já escrevi um texto a respeito disso — o grande público precisa ser poupado dessa verdade. A imitação é o grande tabu; todos os outros são imitadores, mas eu sou autêntico e original.

Agora, aqui há outro aspecto muito importante. Tudo que o influenciador faz é para os seguidores, mas ele precisa dar a impressão de que, pelo contrário, ele está apenas expressando seu ser, sua identidade, a qual se formou muito antes de os seguidores chegarem. Um perfil com fins lucrativos é na verdade como uma peça de teatro que a cada encenação tenta adaptar-se ao gosto do público, mas que precisa dar a impressão de que o script sempre esteve pronto.

É só para olhar!

(Até porque os produtos vendidos pelo perfil podem ser esse script, ou trechos desse script, que sempre conta a mesma história: veja como eu cheguei aqui, você também pode chegar.)

Resumindo: o influenciador exibe objetos e qualidades para o seguidor desejar. Sua vida, suas ideias, suas atitudes, sua riqueza (material ou, digamos, «espiritual», na forma de sabedoria). O seguidor, como Dom Quixote, como Emma Bovary, deseja aquilo que vê no perfil do influenciador.

2 A proibição de imitar

Numa comédia de Shakespeare, numa relação entre amigos, é fácil entender o aspecto ambíguo da imitação. Eu quero que você admire minha coleção de canetas-tinteiro, mas só isso: não pretendo emprestá-las. Quero que você ache minha namorada bonita, mas nada de se engraçar com ela.

Como, porém, o influenciador diz «não é para o seu bico!» para o seguidor?

Marcando sua distância dele com frases como as seguintes:

«Essa resposta que eu estou te dando é uma tremenda consultoria.»

«O que eu ofereço aqui vocês raramente vão encontrar.»

«Estou ensinando o que ninguém ensina.»

«Estou fazendo por vocês o que os seus pais não fizeram.»

«Eu fiz tais e tais coisas extraordinárias» (e fez mesmo).

Ou, em suma, para dar um clima mitológico:

«Fui ao Olimpo roubar o fogo dos deuses para trazer para vocês. Saiba o que eles não querem que você saiba!»

Por mais que o marketing diga que é importante tratar o seguidor como se ele fosse o herói da famosa jornada, na prática o influenciador é que é o herói. Ao seguidor cabem gratidão e migalhas, pequenas brasas do fogo do Olimpo.

É importante destacar os marcadores de excepcionalidade, aqueles traços que distinguem o influenciador como alguém acima do comum dos mortais. E é igualmente importante ressaltar que certos traços são excepcionais mesmo, que nem tudo é show de mágica, smoke and mirrors.

De todos esses, o que mais importante é o que chamo de «grande desejo», que se traduz numa força de vontade fora do comum. Ter objetivos grandiosos e sacrificar muito por eles, ao longo de muitos anos.

Esse traço é o mais importante por um motivo simples: nem todo mundo tem uma grande inteligência, nem todo mundo é particularmente bonito, nem todo mundo toca piano como Claudio Arrau. Mas todo mundo acredita que, com um grande esforço, pode alterar a própria vida de maneira significativa. Não acredito que posso me transformar no George Clooney, mas acredito que posso trabalhar mais e enriquecer. É por isso, até, que existe todo o segmento «motivacional».

Resumindo: o influenciador ressalta o quanto é fora do comum, fazendo com que o seguidor entenda que a vida extraordinária dele, o conhecimento extraordinário dele, não está ao alcance de qualquer pessoa.

3 A aparente impossibilidade de sair dessa situação

De um lado, o seguidor admira e deseja o que o influenciador tem. De outro, o seguidor é frequentemente lembrado dos grandes obstáculos que o separam do influenciador. Em algumas ocasiões, é aberta uma porta que permitiria uma aproximação: assim funciona o «gatilho da escassez». Não é a escassez por si, mas o atiçamento de um desejo até seu ponto mais lucrativo. Afinal, «muito custa o que muito vale».

Mas por que o seguidor não abandona esse modo de viver? Por que ele vive nesse esquema de dependência emocional?

Porque o influenciador parece representar valores morais, transcendentais, dos quais o seguidor não pode abrir mão. As qualidades (reais!) dos influenciadores parecem emanar desses valores: tradição, família, e propriedade (sim, eu sei o que escrevi). Cumprimento do dever. Respeito. Reverência.

Você está disposto a acreditar que o padre ou o pastor da igreja próxima da sua casa não representa toda a religião, mas ele não foi escolhido — ele apenas estava perto da sua casa. Sua relação com o influenciador é uma relação de desejo. Você acreditava viver num mundo mau e perseguidor dos valores eternos, e agora encontrou pessoas de sucesso cujo discurso fala desses valores eternos, os quais agora têm rostos.

Assim, esses valores têm a aparência de uma obrigação moral e religiosa: busca da riqueza em primeiro lugar, a fim de sustentar muitos filhos.

(Como meus ídolos de adolescência sempre foram escritores, os quais costumam ter vidas alopradas, nunca me ocorreu que, aos 40 anos, quando comecei a postar no Instagram, eu tivesse alguma vaga obrigação de ser rico e de ter oitenta filhos homeschoolados — embora eu tenha o maior respeito pelo empreendedorismo das mães que optam por isso e esteja disposto a entrar em guerra pelo direito à educação domiciliar.)

Resumindo: o influenciador extraordinário ainda por cima parece encarnar todos os valores em que o seguidor acredita. Abandoná-lo daria a sensação de trair as próprias convicções.

4 Conversão e cura

Para o seguidor que tem uma relação de idolatria com um influenciador, abandonar essa relação seria o equivalente a uma verdadeira «conversão romanesca» no sentido de René Girard.

Por exemplo: no fim de Dom Quixote, Alonso Quijano se arrepende da leitura dos romances de cavalaria e deixa de ser Dom Quixote, o imitador do grande herói Amadis de Gaula. Emma Bovary se mata — mas ela poderia ter rejeitado a leitura de romances sentimentais, que fez com que ela contraísse dívidas e arrumasse amantes. Julien Sorel, ao fim de O vermelho e o negro, abandona suas ambições de grandeza.

Isso significa: o seguidor teria de abandonar a pessoa que ele gostaria de ser, ou que ele acha que deveria ser. No caso de uma pessoa religiosa, ela teria de reformular sua própria concepção da religião. Porém, tudo isso parece imoral, parece uma traição.

Porém, quantas pessoas vão virar a mesa e sair dessa situação, e quantas vão ficar aguardando o próximo lançamento, a próxima pequena oportunidade de ficar mais parecido com o influenciador?

Quantas pessoas dirão aquilo que não deve ser dito — que todo perfil é uma ficção, cuidadosamente escrita para produzir o máximo de efeito?

Quantas pessoas perceberão que, por terem encontrado na internet um personagem de vida invejável que parece encarnar seus valores, estavam dispostas a justificar qualquer atitude dele, como se ele fosse um deus olímpico, e elas, meros mortais?

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Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara