001 O Sol, os ratos, e como acabar com essa história de Sol e de ratos
Em que começo a falar do subsolo de Dostoiévski e proponho uma solução simples para quem se sente intimidado pela leitura
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Obrigado de antemão e boa leitura.
Introdução
Esta newsletter terá duas partes.
Na primeira vou falar da sensação de humilhação diante da leitura. É uma parte mais sutil, que poderia ser estendida de várias maneiras. Aliás, que será estendida nos próximos textos e no Instagram.
Na segunda parte, vou falar de um caminho absolutamente simples para não se sentir humilhado diante dos livros: começar lendo livros fáceis, que deem gosto pela leitura.
1 O subsolo da leitura
Quem me acompanha há algum tempo sabe que sou das releituras. Outro dia, relendo Mentira romântica e verdade romanesca, me deparei com René Girard dizendo que a psicologia do subsolo era a psicologia da nossa época. E isso porque ele publicou o livro em 1961...
Mas que raio de coisa é essa «psicologia do subsolo»? É algo que vem do livro Memórias do subsolo, de Dostoiévski, um romance curtinho, talvez uma novela, que tem duas partes: uma teórica, em que o narrador escarnece do utilitarismo, da ideia de que o homem busca racionalmente a própria felicidade, e outra narrativa, que seria a prova por meio do exemplo. Como se o narrador dissesse: «Então veja só aqui a minha vida para ver se eu estou buscando a felicidade.»
Dentro da segunda parte, me interessa aqui o episódio do narrador com o oficial. Uma noite, numa taverna, o oficial, que é alto e forte, quer passar. Em vez de pedir licença, o oficial simplesmente pega o narrador e o muda de lugar. O narrador, claro, fica ofendidíssimo. Mas não faz nada na hora. Ele passa a sonhar com o oficial, começa a pensar no que faria, cogita mil reações. Porém, ele também põe o oficial no pedestal, e imagina que, se ele pedisse desculpas, então os dois virariam melhores amigos.
O ato de desprezo do oficial fez com que o narrador fizesse dele um ídolo. Se o oficial humilha, se é indiferente, o narrador está na pior. Só existem a raiva e o ressentimento. Se o oficial decide se abrir, então o narrador pode entrar num mundo mágico positivo. O oficial passa a ser good cop e bad cop ao mesmo tempo.
Lembro ainda do que Stavróguin diz em Os demônios, romance posterior de Dostoiévski: «Eles me tratam como se eu fosse um Sol e eles fossem ratos.» Os personagens do romance vão ter com Stavróguin essa mesma relação: tudo é feito por ele, todos esperam sua presença, mas ele ou não aparece, ou, se aparece, não diz nada.
Pois bem bem. Sessenta anos depois da publicação de Mentira romântica e verdade romanesca, estou vendo essa «psicologia do subsolo», em que só existem dois extremos, ratos e Sóis, ratos e ídolos, vermes e deuses, chegando à relação das pessoas com a própria leitura.
Antes eu achava que isso era uma particularidade da jovem direita brasileira, mas conversei com Alex Castro, que dá um curso de literatura que eu chamaria de «pós-graduação sem trabalho final» para um público mais à esquerda, e ele me disse que seus alunos (ele diria «suas pessoas alunas») têm a mesma reverência descabida perante os livros: aí dentro do livro deve haver algo grandioso, como posso me aproximar? Como posso conquistar o oficial? Como obter um sorriso de Stavróguin?
Aliás, aí surgem várias oportunidades de exploração. Você pode dizer que o livro é um universo mágico, e você vende o cogumelo alucinógeno que te leva até lá; que o livro é o Everest, e você vende os equipamentos de alpinismo.
Pensemos de novo no episódio do homem do subsolo com o oficial: se ele tivesse apenas reclamado na hora, talvez ainda assim tivesse ficado de mau humor, mas veria no oficial apenas um grandalhão grosseiro, não um ídolo. Da mesma maneira, quem acha que precisa de mil métodos para ler um livro precisa... apenas ler um livro. Um livro que desperte algum interesse e que não seja muito difícil. Um livro que tire os livros do pedestal. Os livros não são Stavróguin, que estava sempre se esforçando para ser incompreensível e inacessível.
(Aliás, o próprio Girard assinala que a psicologia do subsolo já aparecia nesses livros incompreensíveis da teoria francesa do século XX. «Escrevi, mas não para ser lido, porque jamais admitirei que gostaria que leitores gostassem de mim; se eu admitir essa vulnerabilidade, sou um rato.»)
2 Um caminho para sair do subsolo da leitura: a intimidade conquistada aos poucos
Embora eu tenha algo de mefistofélico, gostando de descrever problemas sem querer me preocupar com uma solução, devo dizer que, enquanto eu escrevia as linhas aí de cima, uma solução me ocorreu.
Ainda que me pareça que a psicologia do subsolo de fato esteja presente, também não posso esquecer que muitas dessas pessoas talvez estejam chegando à leitura sem nunca ter tido o hábito de ler. Naturalmente, eu mesmo não comecei lendo Hegel na infância. Comecei lendo Monteiro Lobato. Depois li romances de aventuras. E, embora eu certamente possa imaginar um adulto lendo Alexandre Dumas, José de Alencar, Victor Hugo, Júlio Verne (tão querido nosso que nem dizemos Jules Verne), ou mesmo Machado de Assis, tenho dificuldades de imaginá-lo lendo as Reinações de narizinho ou até mesmo O senhor dos anéis.
Em vez de grandes métodos de leitura, o adulto talvez precise apenas ler livros acessíveis. Pode ler Paulo Coelho. Não vejo problema nenhum. Depois, Malba Tahan, clássicos do século XIX. Depois pode ler A amiga genial, que é muito bom. Tanto faz. Não estou, agora, propondo um currículo. Estou só pensando que, no mais das vezes, é melhor ir do mais fácil para o mais difícil.
Com um detalhe que acho importantíssimo: o gosto. Se você ler muitos bestsellers contemporâneos, provavelmente vai descobrir algo a respeito de si mesmo: vai descobrir aquilo de que você gosta. São histórias de aventuras? De detetive? De amor? Tudo isso?
E então você pode se fazer a pergunta: será que aquele livro que dizem que é uma obra-prima, um clássico e o escambau... Bem, será que ele é mesmo essa Coca-Cola toda? Porque uma obra-prima muitas vezes nada mais é do que um livro popular mas com algum tempero, com uma chave virada em outra direção, que você lê achando um pouco estranho, e que, ao terminar de ler, faz com que você pense: ainda preciso reler.
Mas não porque você se sentiu humilhado. Não porque você se sentiu como um Sol diante de um rato. É o contrário. Você sente gratidão e sente que ainda não aproveitou tudo, que não viu tudo. Imagine que você nunca visitou Paris e só tem uma semana. Você sente que precisa voltar! E sabe que a volta será diferente, provavelmente melhor.
Você não precisou de nada para ler esses livros iniciais. Ler é o próprio aprendizado. Você precisa de algo para ler O alquimista? Se precisasse, não seria um dos livros mais lidos de todos os tempos. Precisa de grandes coisas para ler Malba Tahan, que influenciou Paulo Coelho?
E para fazer um macarrão mais sofisticado você não precisa primeiro aprender a fazer um macarrão mais simples? Se você nunca tomou um bom vinho simples, um bom vinho um pouco mais complexo, como vai tomar um grande vinho e apreciar? Você vai ficar com aquela sensação de que os outros são picaretas e estão mentindo, ou então com a sensação de que você é uma besta que nunca vai desenvolver o paladar.
Ou seja: você vai subindo, degrau por degrau. Eu fiz isso com os livros na infância e na adolescência. Teve gente que nunca fez. Isso pode ser uma desvantagem, mas também é uma vantagem. Muitos desses livros têm valor mais como entretenimento mesmo e não vão mudar sua vida. Eles servem mais para dar o gosto pela leitura, para acostumar a buscar a leitura como prazer. E isso é muito importante. Espero que ninguém pense que eu leio Dostoiévski e René Girard sem gostar, que eu faço isso para mostrar que não tenho medo de injeção e que enfrento tudo que é árido e insuportável de cabeça erguida.
Isso seria a pura psicologia do subsolo.