Um desabafo. Volto no sábado com outra newsletter gratuita. Obrigado a todos, especialmente aos assinantes pagantes.
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Existem alguns motivos para eu evitar temas políticos. O primeiro deles é que a política tornou-se um gatilho de indignação, e eu mesmo há anos perdi a paciência para a indignação moral. Isso é uma lástima: existem muitas coisas que merecem indignação, mas a indignação se banalizou tanto que me parece irremediavelmente fake.
Afinal, de que adianta um grito de batalha que nunca leva à batalha? Uma consequência de escrever com frequência textos indignados — ainda mais quando você ganha dinheiro com esses textos — é transformar a indignação em entretenimento. Se alguém sempre lê um autor indignado, sempre ouve um programa indignado, e nunca faz nada, é porque gosta da indignação.
O segundo motivo é que muitos temas políticos têm uma complexidade que supera muito meu interesse. Não estou querendo ser blasé. Todos estamos tentando sobreviver a uma enxurrada perpétua de informações. Ou você pratica uma dieta da informação, ou morre, pelo menos espiritualmente. E uma morte espiritual é ficar repetindo coisas que você não sabe, especulando demais e pesquisando de menos.
Feita toda essa ressalva, vou compartilhar aqui uma angústia.
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Abro o primeiro caderno do jornal O Globo (que não assino; desde que a pandemia começou, estou naufragado na casa dos meus pais, e creio que só lá para o fim do ano volto para São Paulo) e me deparo com um estranho artigo de Rodrigo da Silva (o editor do Spotniks?). O artigo faz uma listagem modesta e gratuita de alguns crimes do Partido Comunista Chinês. Não menciona a política do filho único, isto é, do aborto forçado. E termina dizendo que o desenvolvimento econômico não precisa de violência.
Foi um pouco difícil não imaginar um artigo dirigido ao Sr. Hitler provando, com os melhores gráficos estatísticos, que cometer violações de direitos humanos («aliás graves, diga-se de passagem», acrescentaria meu articulista imaginário) não era o melhor caminho para a prosperidade e para um III Reich mais justo.
Intrigado, continuei virando as páginas do jornal e cheguei a um anúncio de página inteira publicado pelo governo chinês enaltecendo o próprio Partido Comunista Chinês.
Bem, a esta altura o leitor já consegue imaginar a analogia que eu faria.
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Antes de tomar café, eu preparava a newsletter do sábado. Falava de como Julien Sorel se horrorizava com o dinheirismo da cidadezinha de Verrières em O vermelho e o negro. E de fato Stendhal pintou um Sr. de Rênal particularmente repulsivo, incapaz de ver algo bonito sem imediatamente fazer um cálculo de custos e benefícios.
Imagino o Sr. de Rênal dirigindo o jornal O Globo. «Mas veja, o jornal é uma empresa, qual o problema de publicar um anúncio do Partido Comunista Chinês?» Talvez a Sra. de Rênal tenha então olhado os três filhos e dito: «Esse PCC não teria permitido a nossa família.» E então, para evitar mais aborrecimentos em casa, e já que o espaço do artigo na página de opinião teria de ser preenchido mesmo, o Sr. de Rênal encomendou algumas palavras.
Claro que meu parágrafo anterior é uma maldade. Maldade com os personagens fictícios de O vermelho e o negro. Acho que o Sr. de Rênal talvez refletisse que um dos luxos que o dinheiro proporciona é recusar certos clientes.
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Daí que eu tenha dito: angústia.
Não penso nem na duplicidade. Basta um grupo de pressão como os Sleeping Giants para que uma imprensa recuse anúncios de alguma empresa que contrarie pautas da política identitária. Mas um anúncio do PCC (sim, me divirto com o fato de que o PCC também é o Primeiro Comando da Capital) pode ser publicado, com a ressalva de que o jornal também publicou um papel higiênico ideológico.
Penso, isso sim, em como é possível manter a própria tranquilidade e não se deixar nem contagiar por esse espírito de prostituição — é fácil, você passa a achar que nada vale nada, a acídia chega, logo você está fazendo qualquer coisa, ainda mais se for bem remunerada —, nem ficar petrificado de indignação. Porque a raiva também turva a mente, deixa você suscetível a acreditar em qualquer coisa que se encaixe naquilo que você quer que seja verdade.
Nas décadas de 1930 e 1940, Georges Bernanos publicou os textos mais ferozes e mais justos contra a degradação das consciências em seu país, contra o clima que permitiu a Segunda Guerra Mundial. Mas ele esteve em duas guerras (serviu na Primeira Guerra Mundial e vivenciou a Guerra Civil Espanhola). Seu tom combativo faz todo sentido.
Agora, o que temos? Essa lenta dissolução, o momento em que o PCC é tratado como uma organização respeitável, que não devemos desagradar, afinal, se isso acontecer, quem vai comprar a nossa soja…
Penso no artigo de Rodrigo da Silva. Penso em todas as vezes que falam dos progressos econômicos da China. Gostaria de não me sentir o idiota inconveniente que diz que, se um progresso econômico custou algumas dezenas de milhões de vidas, talvez seja hora de rever as prioridades.