007 Um indivíduo excepcional num mundo medíocre
Uma premissa tão comum que mal chegamos a percebê-la?
Algumas informações sobre o curso «Desejo & Orgulho» estão ao fim da mensagem. O valor e o método de inscrição ainda estão sendo decididos. Como sempre, obrigado pelo interesse. Assinantes pagantes desta newsletter terão descontos maiores.
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Por mais que você já tenha desmistificado e abandonado a ideia de que você é mesmo especial e os outros são banais, não é tão simples não se deixar levar por essa sensação. Para retomar os termos de René Girard em Mentira romântica e verdade romanesca, num mundo «normal», você é a «exceção».
Relendo O vermelho e o negro para preparar aulas sobre o romance, não tenho como não sorrir ao ver as afinidades entre Julien Sorel e a Sra. de Rênal. Stendhal fez de cada um deles a exceção a seu meio. E devo dizer: eu, leitor, certamente me identifico com eles, as «exceções», e não com os outros que são a «norma».
Sorel é um rapaz livresco, sensível, mas filho de serralheiro, cercado de gente grosseira e dinheirista — e que ainda tem o profundo desprazer de descobrir, ao passar a viver numa casa da «alta sociedade», que os ricos são igualmente grosseiros e dinheiristas.
Para mim, é curioso que Sorel não tenha ficado surpreso com a grosseria dos ricos. Talvez Stendhal não tenha registrado essa surpresa porque ele mesmo já convivia com eles. Digo isso porque, quando fiz Letras na UFRJ, uma amiga que sempre estudou em escolas públicas dizia achar que as crianças da Zona Sul do Rio — como eu — liam Machado de Assis com gosto e volúpia desde a mais tenra idade. Mas o que fazer? Precisamos acreditar que, em algum lugar, as coisas são diferentes.
A Sra. de Rênal, mulher piedosa, descomplicada, nunca conviveu muito com os homens. Para ela, o mundo grosseiro e dinheirista, a discussão de coisas práticas como se fossem assuntos de vida ou morte, é o próprio mundo masculino. Isso é tudo o que ela vê no marido e nos homens — iguais a este — que aparecem em sua casa.
Eis que chega Julien Sorel para ser o preceptor dos filhos da Sra. de Rênal, e um logo descobre ser um oásis para o outro. Um oásis, aliás, que nenhum dos dois sabia que existia.
Bem, claro que esse «logo descobre» leva semanas; claro que nenhum dos dois tem clareza imediata quanto aos próprios desejos. Hoje as pessoas falam muito de clareza, mas acho que há algo de indevido nessa cobrança. Ainda me parece normal ir vivendo e descobrindo. Me parece normal descobrir que você quer algo só depois que aquilo está na sua frente. Como na bonita canção de Fito Páez, yo no buscaba nadie y te ví. E que você só possa dizer yo no buscaba nadie y te ví retroativamente, depois de refletir sobre o que aconteceu.
(«Eu não estava procurando ninguém e vi você», caso haja dúvida.)
2 Um parêntese sobre Dante
Sim, resta o pequeno detalhe de que a Sra. de Rênal tem esse nome por ser casada com o prefeito da cidade. Um pequeno detalhe com uma longa tradição. Hoje nós só aceitamos o casamento por amor; pelo menos desde a Idade Média até algum momento do século XIX, o amor era essencialmente adúltero.
Ou ao menos o amor literário. Dante Alighieri amava Beatrice Portinari, que era casada. No Canto V do Inferno, Dante conta o episódio de Paolo e Francesca (ela, casada com o irmão de Paolo), que se tornaram adúlteros ao ler juntos a respeito dos amores adúlteros de Lancelote com a princesa Guinevere. Nesse Canto, Dante ainda faz um apanhado de adúlteros famosos, pondo todos no inferno.
Porém… é Beatrice quem manda Virgílio buscar Dante, é Beatrice quem guia Dante por uma parte do Paraíso. Será que foi somente por que o adultério nunca se consumou, por que aliás nem há notícia de que Beatrice tenha sequer se interessado por Dante? Mas e Dante, que, triste após a morte de Beatriz, se casa com Gemma Donati, com quem faz quatro filhos? E Gemma, que não acompanha o marido quando este tem de exilar-se de Florença, e, a distância, vê que ele publica um longo poema para Beatrice?
A Comédia é um livro muito estranho. Aliás, toda essa estranheza de Dante sempre me fascinou, mas estou longe de poder dizer mais do que aquilo que acabo de dizer.
Agora, para voltar a Stendhal, vale só dizer que talvez o leitor do século XVIII já estivesse mais acostumado ao clichê literário do amor associado ao adultério do que nós, que vivemos na cultura do casamento por amor. Reparem em como a Sra. de Rênal nunca se pergunta se seu casamento corresponde a um ideal amoroso. Agora, como ela é a exceção, como ela é que descobre, com Julien Sorel que as coisas podem ser mais do que são, ela é que prefigura… Emma Bovary.
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A premissa da norma e da exceção é tão comum que, em muitas histórias, nem chega a ser percebida. O personagem excepcional acaba fazendo algo que «deveria ser a norma» ou que sustenta a norma.
Por exemplo: nas histórias policiais, de detetive, você já sabe: é o policial suspenso do serviço, é o policial heterodoxo, que, com métodos não recomendados mas eficazes, resolve o caso. The Wire é o melhor retrato disso: o sistema, que é a norma, existe para se manter, a justiça precisa ser feita nas brechas, pelo detetive que é a exceção.
E se eu disser que numa série ou num filme policial qualquer o detetive suspenso encontra o bandido e acaba matando-o em legítima defesa… Isso chega a ser um spoiler? Me parece, aliás, que esse é o maior resquício na cultura pop do mecanismo do bode expiatório. Todo dia, um filme novo, uma série nova «denuncia» que a norma só pode existir porque tem uma dívida com a violência eficaz da exceção.
Em O vermelho e o negro, Stendhal está firme nessa premissa moderníssima: o nobre que devia ser nobre na verdade é grotesco e mesquinho, o filho de serralheiro que é ambicioso e manipulador é mais «nobre» do que ele. A nobreza de sangue não faz sentido, o que conta é a nobreza de alma.
Assim, o Sr. de Rênal não é ridículo a ponto de «merecer» as humilhações impostas por Sorel — que incluem o adultério com sua esposa?
(E se você acreditar que algo como «a cultura» ou «a literatura» são os valores supremos, por que não acreditar que a estranha relação de Dante com Beatrice é justificada pela existência da obra literária de Dante? A norma e a exceção podem não estar na obra de Dante, mas ele mesmo não se coloca como exceção na vida? Vida essa que só é relevante porque toda a sua obra tem algo de autobiográfico?)
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Repito: a premissa da exceção contra a norma é tão comum que, em muitas histórias, nem chega a ser percebida.
Se eu desse um curso comparando 1984, de George Orwell, com 2084, de Boualem Sansal (ambos em minhas traduções, a segunda a ser publicada), cogitaria partir da seguinte pergunta: será que esses romances não estão tentando levar ao máximo a diferença entre a norma e a exceção quando falam de mundo totalitário contra consciência solitária? Não estão apelando ao máximo para o temor de que deixemos de ser especiais e fiquemos submetidos aos outros?
Na sua Retórica (um dos livros que mais reli), Aristóteles explica que os silogismos retóricos («entimemas») mais poderosos partem de premissas com as quais o público já concorda. Claro que um romance, em princípio, não é uma obra de retórica, mas 1984 e 2084 são romances-panfletos, romances-alertas, que pretendem muito mais do que levar o leitor a uma contemplação desinteressada. Será que, em vez de simplesmente pressupor a norma e a exceção, como O vermelho e o negro, 1984 e 2084 não tiram sua força (eu diria sua «popularidade», mas isso só vale para o Orwell) de escancarar essa premissa e criar um mundo em que ela nem seria entendida?
Talvez saltando alguns passos no argumento, até que ponto 1984 e 2084 descrevem riscos reais para a consciência, e até que ponto são expressões de um orgulho paranoico, que se vê atacado por todos os lados? Eis um tema que vale a pena explorar. Retornarei a ele.
Informações sobre o curso «Desejo & Orgulho»
As inscrições devem ser abertas em 12 de julho. O curso deve levar oito semanas: 4 para Stendhal, 1 para Turguêniev, 3 para Dostoiévski. Ainda estou me decidindo quanto aos valores e aos descontos, e quanto à plataforma. Inclino-me para o Hotmart. É complicado para mim — sou uma operação de um homem só — ficar conferindo pagamentos.
De um lado, o desejo. Admitir que você é vulnerável, que algo te falta, que é preciso buscar a aventura e correr riscos. O mundo do desejo foi aberto a todos os homens pelas revoluções democráticas do fim do século 18. Por isso, o grande romance realista do século seguinte fala de desejo e de ambição.
De outro lado, o orgulho. Admitir a vulnerabilidade é expor-se. Na hora de competir, o outro parece perfeito, pleno, superior. Como evitar a humilhação? Um rei não podia humilhar um plebeu. O rei já era o rei, e o plebeu, o plebeu. Mas o seu concorrente pode humilhar você.
Antes, se você nascesse camponês, provavelmente morreria camponês. Assim, vem a pergunta: agora que você pode fazer qualquer coisa, o que vai fazer da sua vida? Ou ainda: como vai convencer os outros de que fez algo grandioso?
Três grandes romances fazem um panorama da luta entre o desejo e o orgulho.
E não adianta nada dizer que um romance é grande sem saber por que ele é grande.
No eletrizante O vermelho e o negro, Stendhal conta a história de Julien Sorel, um plebeu de talento que aprende a arte de viver na alta sociedade, manipulando o desejo e o orgulho alheios.
O breve Diário de um homem supérfluo, de Turguêniev, por outro lado, é narrado por um dos primeiros grandes perdedores do combate da sedução, naufragando no desejo e no orgulho.
Por fim, em Memórias do Subsolo, Dostoiévski apresenta a situação mais próxima da nossa: a vitória do orgulho sobre o desejo. Mesmo que o personagem esteja na pior situação possível, ele fará questão de deixar bem claro: «Não doeu! O que vem de baixo não me atinge!»
Das séries de meninas adolescentes a histórias reais de serial killers, é muito difícil encontrar uma motivação que já não tenha sido descrita e estudada por um desses grandes romances.