Talvez o maior desafio hoje, 17 de julho de 2021, no Brasil, seja conseguir falar de certos assuntos sem despertar a exasperação, a raiva, o desprezo. E o desafio é sério porque há muita coisa que precisa ser discutida com boa vontade, sem escândalo.
O texto é longo porque o tema é delicado.
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1 De como escapei do Cramulhão
Eu vos digo: no dia do juízo os homens prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido. (Mateus 12, 36)
Em 1998, numa Barnes and Noble na frente do Lincoln Center, em Nova York, comprei o livro Darwin’s Black Box, do biólogo Michael Behe. Foi desse livro que saiu a hipótese do «design inteligente»: num nível molecular, as estruturas que mantêm a vida viva dependeriam de um equilíbrio delicado demais para admitir mudanças graduais. Ou elas atingem num único passo um novo equilíbrio funcional, ou o bicho nem vive.
Behe dizia que o leitor totalmente leigo não conseguiria acompanhar o livro. Que deveria ter ao lado algum livro texto de biologia, talvez outro de química, porque não daria para explicar tudo.
De fato, não consegui acompanhar o livro. Mas também não quis fazer o esforço recomendado pelo autor. Logo percebi o seguinte: Isso vai dar muito trabalho, e não estou tão interessado a esse ponto. Estou mais interessado em outras coisas, e minha energia é limitada.
Esse foi um dos momentos em que percebi uma armadilha. Comprei o livro porque queria entrar na famosa «guerra cultural». Quando me deparei com o custo pessoal de entender a questão, percebi que a motivação era essa, e era boba. Havia outras coisas que efetivamente me fascinavam, nas quais eu pensaria mesmo que nunca fosse escrever uma linha a respeito delas.
Essa seria uma armadilha do orgulho, um verdadeiro «pacto com o Diabo»: eu gastaria minha energia estudando algo que não me interessava realmente, para entrar numa briga que não me traria nada, só porque não podia resistir ao comichão de uma provocação.
Aliás, comichão de uma provocação que eu queria fazer.
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Agora, há nessa recusa, também, um custo, provavelmente salutar, para o meu orgulho.
Percebi que eu jamais poderia ter uma opinião realmente minha sobre o tema da evolução. Se você me pedir uma opinião minha sobre como Machado de Assis construiu Dom Casmurro, eu tenho. Sou capaz de argumentar. Falo muito da teoria mimética de René Girard, mas, além de ler o próprio Girard, também leio os autores que ele leu, para ver o que ele viu. Isso deu trabalho e continua dando trabalho — o qual realizo de bom grado.
Sobre o tema da evolução, não tenho nem terei nada a declarar. Aliás, logo a hipótese do design inteligente foi sequestrada por religiosos para «combater o evolucionismo». E simplesmente mencionar a hipótese do design inteligente virou um sinal de «criacionismo». Esse processo de sequestro de ideias e de configuração de uma disputa retórica é algo que eu posso descrever. Até me interessa que o «progressismo» que se via por trás do «evolucionismo» me parece ter mudado muito de feição.
Mas não posso falar nada sobre as ideias mesmas. Só posso dizer que «uns dizem X, outros dizem Y».
3
Lembro ainda do assombro que se seguiu depois que percebi essa limitação do meu conhecimento: a rigor, também não sei como funciona o computador em que digito estas palavras, nem sei como este prédio de Copacabana se mantém de pé. Um medieval que tivesse construído a própria casa tinha muito mais domínio do mundo à sua volta do que jamais terei. Claro, era um mundo muito menor e mais simples.
Nas primeiras aulas de teatro, você sempre faz aquele exercício de cair para trás e se deixar pegar pelos colegas. É um exercício de confiança. O fato é que estamos confiando o tempo todo nas pessoas, a respeito de coisas que jamais vamos entender.
Depois daquele susto inicial, comecei a admirar essa confiança de maneira quase infantil. E, quando me tornei tradutor, passei a entender o seguinte: sei que não existe gabarito de tradução literária, mas espero que meus clientes confiem em mim.
Com tudo isso em mente — de fato: desde 1998, sempre penso nisso —, em 2018 me cortei com uma armação de metal ao encaixar um aparelho de ar-condicionado que comprei. Limpei o corte, pus um sapato, atravessei duas ruas e, no posto de saúde, pedi uma vacina antitetânica. A qual me foi prontamente ministrada. E aqui estou.
Não sei de onde veio a vacina. Pensando bem, nem sei direito o que é tétano.
Em 2021, atravessei as mesmas duas ruas e tomei a vacina da Pfizer contra o coronavírus. Sim, eu teria procurado preferencialmente essa vacina por um motivo simples: preciso ir à Europa terminar a pesquisa da biografia do Bruno Tolentino, sonho fazer isso de maneira um mais pouco relaxada, mostrando às pessoas alguns lugares que inspiraram poemas (imagine falar de «Nascimento em Ravena»… em Ravena! Ou ir ao Ashmolean Museum em Oxford e mostrar o quadro «A caçada», de Paolo Uccello), e acho que uma vacina aceita pela European Medicine Agency facilitaria minha vida.
Agora, veja que a minha justificativa tem a ver com informações que consultei no próprio site da União Europeia, não com um «conhecimento sobre vacinas» que eu tenha.
4 A crise da autoridade
Por outro lado, me parece ingênuo pressupor que toda a confiança inercial nas instituições deva ser transmitida para uma situação nova, com um vírus novo, possivelmente produzido no laboratório de um país comunista, fechado, secreto, cujo governo mantém campos de concentração e realiza abortos forçados.
Isso porque quase tudo que descrevi acima aconteceu aqui na minha consciência individual. A crise foi minha. O mundo continuou igual, indiferente a mim, e eu pude viver a minha crise tranquilamente, com espanto e assombro, mas não com pavor. Mais ainda, ao fim da crise eu aceitei a minha posição de confiança.
Esperar que as pessoas tenham todas a mesma reação de confiança dócil no que quer que lhes seja dito justamente quando uma situação nova e perigosa as obriga a mudar de vida, até radicalmente… Escrevo estas linhas, não apago, mas preciso respirar — não quero me deixar levar, porque a serenidade é uma prática.
Outro dia, ao conversar com meus pais (que receberam a CoronaVac) a respeito de entrar na Europa, eles me disseram que a União Europeia aceitaria o que a OMS aceitasse. Fui pesquisar. Falso. A OMS na verdade está protestando junto à European Medicine Agency, alegando que o fato de esta não aceitar certas vacinas cria a impressão de que algumas vacinas são para europeus e outras para a gente marrom abaixo do Equador…
Para nem falar de, digamos, outros abalos no consenso. Tratamento precoce vale ou é coisa do capeta? E a avó da minha esposa, que, com 92 anos de pura lucidez, deixou de entender onde estava duas semanas após a vacina, e faleceu logo depois? E os relatos de grávidas que perdem seus bebês após a vacina? E os casos de mortos que, sem ter covid, ganham covid no atestado de óbito? E os médicos que brigam entre si? Por que falar em «consenso científico» como se fosse a autoridade da Igreja Católica perante os católicos?
Mais ainda, e os protestos violentos que estão acontecendo agora mesmo na França contra o «passaporte sanitário», que impede não-vacinados de entrar em trens e supermercados? São os manifestantes todos uns conspiracionistas malucos?
Aqui existe um gatilho para o leitor mudar de assunto e falar da gravidade do vírus. Eu mesmo tive o vírus, foi a pior coisa que já me aconteceu. E conheço também muita gente que sofreu, gente que morreu. Várias vezes durante a pandemia não me saiu da cabeça a fala do personagem de Ricardo Darín no filme O filho da noiva, que grita, exasperado com o Alzheimer da mãe: «¡Esta puta enfermedad de mierda!».
Assim, resumindo. A situação é grave, aliás mortal; cada um diz uma coisa; não existe um manual de boas práticas a ser seguido; por que, então, algumas pessoas tratam outras — pessoas inteligentes, que pagam suas contas, são adultas em todos os sentidos da palavra — como se fossem imbecis a quem só cabe calar a boca e obedecer sem nem mesmo perguntar? Aliás, sem nem poder perguntar: e tal coisa?
Até eu, que há anos desconfio que estou no bonde de Asperger (mas na beira), entendo que não é possível dizer a essas pessoas: «Correlação não é causalidade, aguarde o próximo artigo peer-reviewed — e enquanto isso cale a boca e faça o que eu mando.»
Alguns meses atrás, eu ouvia um episódio do Répliques sobre a pandemia em que o apresentador Alain Finkielkraut e seus convidados deixavam transparecer que a ideia (bem, para um francês) de não confiar no governo seria quase como não confiar na aritmética.
Podemos dizer que, após meses de conversas intimidadoras, em que qualquer pergunta pode virar um gatilho para acusações de conspiracionismo, agora veremos, talvez, a maior crise de confiança que muitos de nós veremos em nossas vidas? Será que as manifestações na França não são a reação a isso?
5 Parêntese para o dilema
Não escrevo para tomar partido, escrevo para tentar descrever uma situação, para investigar motivações.
Por isso não posso deixar de pensar no que seria o lado de governantes bem-intencionados.
Infelizmente, as pessoas se acostumaram a esperar tudo do governo. A ideia de que o governo deveria saber perfeitamente como agir e tomar medidas garantidas contra uma nova pandemia, apesar de obviamente absurda, parece ser um pressuposto para muita gente. (Digo «parece um pressuposto» porque elas parecem agir como se isso fosse verdade, embora eu também creia que elas fossem ficar chocadas com essa frase.)
Além disso, como você pode querer que haja um sistema de saúde estatal sem entregar ao governo, isto é, ao xerife, ao menos alguma autoridade sobre o seu corpo?
(E vejam que eu digo isso como alguém que pratica as medidas sanitárias. Porque, se existe alguma chance de que eu contribua para a morte ou para a doença, prefiro ser prudente.)
O dilema do governo é terrível. Agir é tomar partido. E governo é violência. Governo é ordem. Governo não é sugestão.
6
O capítulo mais recente da pandemia trouxe a figura do «sommelier de vacinas» — mais um título pejorativo que ainda pode nos legar algumas décadas de ressentimento.
(Sim, claro. Você acha que alguém esquecerá ter sido tratado com desprezo, chamado de «sommelier de vacinas»? Acha que a vingança não virá? Acha que outro candidato à presidência — ou o próprio presidente — que represente a raiva contra o desprezo não pode se reeleger só por causa disso? Você acha que ninguém votou apenas para devolver o escárnio? Está tudo em Dostoiévski.)
Sei que as pessoas preferem rir dos sommeliers. Como se ficar escolhendo vinho fosse algo ridículo. Até mesmo meu querido Emmanuel Carrère zomba dos sommeliers em seu último livro, Yoga, dizendo que o que importa é a embriaguez (e, de fato, na narração, ele diz isso e manda para dentro cinco garrafas de vinho branco barato — daquele vinho grego e resinado, sabor Pinho Sol).
Porém, um bom sommelier profissional provavelmente tem as qualidades necessárias para a crise de confiança que vivemos. O sommelier não apenas entende de um assunto «misterioso», que são os vinhos. Ele tem clientes. Ele precisa ser capaz de captar o que os clientes não conseguem expressar, e de tratá-los bem, sem exasperar-se, sem revirar os olhos, sem dizer que, se eles não entenderem que tal vinho é o melhor para combinar com tal comida, são «burros ou mal-intencionados».
Se existisse um verdadeiro sommelier de vacinas, à altura da palavra «sommelier», seria uma pessoa capaz de ouvir as inquietações, de responder as objeções sem o menor sinal de impaciência (inclusive as objeções ridículas), e até de se esforçar para acomodar preferências.
O governo, como falei, é violência. Mas essa violência só se legitima por limitar-se. A autoridade que vem do convencimento só pode existir na liberdade. E, se as pessoas prezam a liberdade, talvez pudessem prezar mais o sommelier, que conquista a confiança em vez de pressupor que os outros lhe devem essa confiança.
Parece terrível falar de sommeliers quando se trata de questões de vida ou morte. Agora, se pensarmos em termos de vida, morte, liberdade, convivência, harmonia, e futuro, talvez essa opção não seja tão terrível assim. Não é porque não entendo nada e estou perdido que quero ser tratado com ordens e desprezo.