011 Maneiras de trocar uma mulher por uma boneca
Não existem eventos sobre feminismo sem feministas. Mas eventos sobre direita sem direitistas...
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Seria impossível organizar um evento universitário sobre feminismo sem chamar feministas. Você poderia dizer que é uma questão de honra. As feministas diriam que é uma questão de bom senso. Mas você pode organizar um evento sobre a direita e o bolsonarismo sem chamar nenhum direitista, nenhum bolsonarista. Prova disso é o evento «Direitas, fascismos, bolsonarismos», que acontecerá na PUC-Rio a partir de 10 de agosto (não deixe de conferir a programação, aliás).
Seria tentador pensar que os direitistas não são chamados porque a classificação «fascismos» ali no meio dá ao evento um certo ar de cosplay do Tribunal de Nuremberg — mas essa resposta, apesar de divertida, me parece falsa.
Devo dizer: desde que recebi o email da pós da UERJ (onde fiz mestrado e doutorado), repassando a mensagem dirigida a prezad arroba s, fiquei deveras intrigado.
A questão é simples. Imagine que você quer fazer um evento sobre a Revolução Francesa. Porém, como estamos em 2021, não é possível convidar Robespierre nem Danton. Só é possível consultar textos, quadros de David, testemunhos diversos. E o maior talento do historiador estaria em quase transformar esse conjunto de documentos, em si um mero objeto, num sujeito falante, que nos fizesse perceber algo real da Revolução Francesa.
A ressalva, é claro, já foi dada no «quase». A melhor reconstituição será sempre uma reconstituição e não a coisa mesma. A melhor reconstituição continuará sendo apenas um objeto — o conjunto daquilo que nos foi deixado por sujeitos.
Por outro lado, para estudar a direita brasileira do século XXI e o bolsonarismo, que são compostos de sujeitos Vivinhos da Silva, parece que o diálogo com ela própria é dispensável.
Fazer todo um evento com convidados internacionais para falar de pessoas que estão ao seu lado no campus, na sua família (a tia do Zap deve ser tia de alguém, afinal), na sua casa, e não são convidadas — isso parece uma versão do Monty Python para O discreto charme da burguesia.
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Também escolho a palavra «diálogo» com muita consciência. Em anos de faculdades de Letras, o que mais ouvi foi a expressão «dialogar com a obra», isto é, esforçar-se para tratar aquele objeto como sujeito. No diálogo platônico Fedro, Sócrates reclama da escrita, diz que um texto nunca responde, mas sempre diz a mesma coisa. É como se ele dissesse: «Um texto é um objeto, um diálogo acontece entre sujeitos.»
Não custa lembrar que a filosofia medieval também era uma filosofia do diálogo. As «questões disputadas» eram disputadas entre pessoas. O que nos chegou foram os registros escritos das disputas.
Sem a possibilidade real de dialogar, boa parte do esforço intelectual está em reconstituir, de maneira inevitavelmente falha e limitada, aquilo que seria um diálogo. O diálogo permanece o ideal, mesmo que nem sempre explicitado. Você sabe que vai reduzir um autor a um objeto, por isso se esforça para não falsear seu pensamento.
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Mas voltemos às feministas do primeiro parágrafo.
As feministas reclamam — não sem alguma razão — de que as mulheres são sexualmente objetificadas. De um lado, eu diria que, sem alguma objetificação sexual, talvez a perpetuação da espécie não fosse possível, mas entendo perfeitamente que, depois de um certo grau, a objetificação vira pornografia.
Ora, qual a vantagem da pornografia? É justamente você não precisar se expor. Se algo é um puro objeto, você pode ligá-lo e desligá-lo sem remorsos e sem se preocupar com a opinião dele sobre o seu corpo e sobre o seu desempenho.
Além disso, você escolhe o objeto justamente por sentir-se fascinado por ele. O assombro que um homem sente diante de uma mulher linda não é tão diferente assim do assombro que impele qualquer pessoa aos estudos. Nos dois casos há uma atração, um eros. Porém, sempre que o assombro e o desejo estão em jogo, também estão em jogo a vulnerabilidade e o orgulho.
Como agi diante daquilo que me fascinou? Como foi meu «desempenho»? Vi meu Fascínio passar e assobiei como o pedreiro proverbial? Reuni coragem e me aproximei? Ou, seguindo as modernidades, me contentei com uma versão totalmente objetificada, com uma sex doll que nunca fará algo que não quero, que nunca vai contrariar minhas opiniões?
(Se o leitor conhecer os ambientes universitários de Humanas, há de ter ouvido milhões de vezes as palavras fecundidade e produtividade como os máximos louvores que se pode fazer a hipóteses e a posturas intelectuais. Bela fecundidade essa que troca o sujeito pelo objeto.)
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Sim, é claro que o evento da PUC-Rio pressupõe um fascínio pela direita. Não é possível organizar um evento acadêmico sem fascínio.
(Seria menos lisonjeiro dizer que o evento acontece só para aproveitar alguma verba que estava sobrando no departamento.)
Mas que fascínio é esse que não se atreve a falar com o colega de faculdade, com a tia, com direitistas famosos e perfeitamente acessíveis que mantêm o apoio a Bolsonaro, como Rafael Nogueira e Josias Teófilo, a respeito de sua adesão? Que pretensão intelectual é essa que, podendo falar com Robespierre, se contenta com registros relacionados a Robespierre?
Que ambição intelectual é essa que, diante do sujeito, se contenta com o objeto?
Será uma ambição limitada pelo mesmo pavor que, diante de outra pessoa, prefere uma versão virtual, uma versão robotizada, que nunca sairá do script? Uma versão que nunca questionará o desempenho do estudioso?
Se a direita que está disponível como sujeito só vai ser tratada como objeto, não é o caso de dizer que aquelas feministas têm toda a razão?