012 Acídia, negatividade da direita brasileira, timidez
Um círculo vicioso que faz gente de talento viver com o freio de mão puxado
Uma novidade. Produzi um vídeo de 19 minutos a partir dos temas desta newsletter. Está no YouTube. (Não está no Instagram. O IGTV disse que o vídeo estava fora do padrão.)
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É curioso que, dentre todos os textos que já escrevi no Instagram, os de maior repercussão tenham sido sobre a acídia e sobre a timidez relacionada a ela. A acídia, segundo São Tomás de Aquino, é a tristeza que vem de achar que os bens espirituais são inacessíveis; tive a intuição de que essa mesma estrutura poderia valer para qualquer bem mundano. Eu queria ser rico, não vou conseguir, então também não cuido do meu dinheiro. Queria saber grego, mas é muito difícil, então também não estudo nada. Achava que Fulana era o amor da minha vida, mas ela ficou com outro, então agora eu passo o dia no sofá vendo Netflix.
Vejam que a acídia não é simplesmente uma desistência. Há desistências que podem ser libertadoras. Santo Agostinho desistiu de estudar grego (como ele mesmo diz nas Confissões) porque era muito difícil, mas continuou passando bem. A acídia é uma tristeza que vem de você achar que não vai conseguir o que quer, e que leva você a descuidar de si, a fazer qualquer coisa, a fingir que é indiferente, a ficar ressentido com quem conseguiu, e, claro, mentindo para si mesmo a respeito disso: por exemplo, você passa a dizer que todo mundo roubou.
A ambiência da direita brasileira ainda é muito dominada pela acídia, sobretudo entre os homens. As mulheres não, as mulheres querem ter filhos, estão estudando loucamente para ensinar a molecada em casa, estão se juntando, estão fazendo o que podem, estão vendo a si mesmas como arcas que vão transmitir algo de importante para a geração futura, venha o que vier. Já os homens se juntam para discutir a decadência do mundo e as mil maneiras como nada nunca mais será como antes. Realmente me pergunto se na direita brasileira já não existem moças que se casaram com homens inteligentes, capazes, mas que sofrem dessa paralisia: já que não lhes basta a esposa como plateia, já que eles sentem, no íntimo, que nunca terão o prestígio que gostariam de ter, guardam seus talentos para posts no Facebook.
2 (Parêntese para pôr parte da culpa no Brasil)
Só devo dizer que o Brasil não ajuda muito nesse quesito. O jornalismo brasileiro tem a bizarra característica de ser dominado por colunistas de opinião, não por gente que apura e vai atrás dos famosos fatos. Se você ler O Globo, que eu já chamei de Diário do Balneário e hoje chamo de Diário do Brioche (porque seus colunistas me parecem todo dia estar dizendo: «Não têm pão? Comam brioche!»), vai ser difícil acreditar na meritocracia. Na página de opinião do Globo, Cacá Diegues já atribuiu aos Evangelhos (livros famosos, eu diria) versículos inexistentes. Esta semana, Washington Olivetto gastou uma coluna do jornal que se diz o mais lido do Brasil para falar que mora em Londres e viu uma série da Netflix.
Em suma: a julgar pela imprensa, não existe motivo nenhum para o ressentido do Facebook achar que precisa estudar mais ou tentar escrever melhor. Com frequência ele se depara com colunas que devem ser piores até mesmo do que o suquinho de negatividade encontrado em posts sobre o fim da civilização ocidental curtidos por 14 pessoas (entre as quais não está a esposa dele).
O pulo do gato é o seguinte: mesmo que você tenha razão, isso é muito pouco; ainda resta, no mínimo, a pergunta: o que você vai fazer da sua vida?. Ter razão é muito pouco. Alegar «resistência» é muito pouco. Como disse Bernanos, a civilização precisa ser criada o tempo todo. Aí é que está o negócio. Talvez porque da mulher saiam bebês ela entenda, muito mais do que o homem, essa verdade elementar.
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Junto da acídia vem a timidez, o tema do segundo post com mais curtidas que já escrevi. A timidez tem a mesma estrutura da acídia: acho que não vou conseguir, então nem vou. Aliás, é possível que a timidez seja o capítulo 2 ou 3 da acídia.
O primeiro capítulo é uma falta de motivação generalizada. Perdido o céu, o que resta? Bem, como você não se mata, depois de algum tempo você sai da apatia e percebe que resta a terra. Marcado pela frustração, você vai esquecendo aquele anseio mais profundo e vai se concentrando em coisas que você pode obter com segurança, ou coisas com as quais você na verdade não se importa muito. Qual o mal em perder algo que eu nem queria muito?
Depois desse capítulo é que vem o ressentimento contra aqueles que conseguiram, sobretudo na forma de uma desconfiança generalizada, de um mal-estar; o acanhamento em relação a tudo que exija correr riscos reais (sim, você pode se frustrar de novo, não é porque você saiu da acídia que a felicidade está garantida); o orgulho daquelas pequenas realizações que ainda garantem o bem-estar; e, pior ainda, a sensação de que a vida é isso mesmo, de que ela não é um risco a correr, mas sim evitar riscos e refugiar-se no prazer.
Ainda criança, eu me impressionava muito com textos de cronistas que valorizavam os pequenos prazeres da vida. Eu não tenho nada contra os pequenos prazeres. Estou escrevendo este texto e meu copo de café extraído a frio está aqui do meu lado. Estou digitando no meu querido teclado HHKB Hybrid. Mas não é disso que estou falando. Estou dizendo que sei que, após passar o dia fazendo algo que na verdade eu não queria fazer, a vontade de abrir um vinho, pedir uma comida, e não pensar em nada é muito mais forte.
Pronto — essa é a acídia: quero esquecer, quero descuidar, porque não estou fazendo o que quero, e ainda por cima estou fazendo o que não quero (ou seja, estou fazendo meio de má vontade, sem me entregar, querendo apenas que aquilo que acabe logo). Era isso que eu detectava nessa valorização dos «pequenos prazeres da vida» — eles não eram prazeres, mas meros alívios.
Se você crescer num ambiente em que quase ninguém faz o que quer, você vai se deparar muito com a indução à timidez. O tempo todo vai ouvir que fazer o que você quer não vai dar em nada, e que o importante é poder se dar ao luxo de não fazer nada. Até hoje, devo dizer, não me recuperei de ter conhecido, em 2001, uma jornalista de 25 anos que já sonhava em aposentar-se e comer salgadinhos na praia…
…e ela me parece a outra face da atitude de fazer pouco de si, de menosprezar-se de antemão, antes que os outros menosprezem.
4 Ressalva
Talvez aqui alguém possa entender que estou defendendo uma vida livre de obrigações porque o mais importante é você «fazer o que você quer». Na verdade, creio que é preciso levar muito a sério o verbo querer. Não estou falando de seguir a própria vaidade, não estou falando de deixar de servir — até porque não adianta, em todo trabalho, inclusive no mais «artístico» (e talvez principalmente nele), você sempre trabalha para alguém.
Agora, também não posso cair no estranho masoquismo de quem se orgulha de apenas cumprir obrigações, de engolir obrigações, de ser hiper produtivo com suas obrigações, de encher a vida de obrigações. Isso também é acídia, isso também soa a «já que eu não faço o que quero, então faço mil vezes o que não quero».
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Preciso concluir diante de um mistério. Tenho a impressão de que, ao dizer isso, apenas rocei a pergunta: por que algumas pessoas chegam a achar que até mesmo um livro, uma sinfonia, qualquer coisa mais ambiciosa não é para elas? Veja o leitor que não estou falando de pessoas às quais nem ocorre ler um livro. Estou falando de pessoas que acham linda a ideia de participar da famosa cultura universal, mas nunca abrem a porta. Por quê? Será que elas acham que é preciso entrar de fraque e cartola?
Semana passada, preparando uma aula do curso Desejo & Orgulho, percebi algo importante para entender o desejo. Creio que a palavra «desejo» pode ter pelo menos cinco sentidos diferentes — concupiscência, capricho, fissura, anseio, e ambição. Você pode ter um anseio qualquer — enriquecer, ser culto, casar com uma modelo, sei lá —, mas ele se transforma numa fissura, naquela queimação de fazer logo, assim que o objeto se apresenta, concretamente. Em O vermelho e o negro, Julien Sorel dá o primeiro passo para seduzir a Sra. de Rênal assim que a mão dela roça na dele sem querer; é aí que a ambição ganha corpo e ele fica fissurado (ou vidrado) para segurar a mão dela voluntariamente na primeira oportunidade.
(O marketing consiste nisso: transformar um anseio numa fissura, e assim efetuar uma venda.)
Daí fica a questão: como deixar claro para as pessoas que elas podem perfeitamente ler um grande clássico como O vermelho e o negro, que elas não precisam de fraque, que esse bufê já está liberado há muito tempo, e que, se elas trouxerem a fome, já trouxeram o mais importante?
Porque, francamente, gostar de verdade de uma grande obra da literatura, admirar um grande quadro, pode ser muito mais fácil do que ganhar um milhão de dinheiros.