016 Os «homens supérfluos» da Rússia
A primeira parte do ensaio inconcluso «A margem direita», que falará da nova direita brasileira
Esta é a primeira versão do que será a primeira parte do futuro ensaio «A margem direita». Em seguida, relacionarei a ideia de «homem supérfluo» da Rússia oitocentista com a sensação de alienação cultural do Brasil da década de 1990, descrevendo minha experiência nas passeatas contra o presidente Collor em 1992 e voltando às Bacantes de José Celso em 1996. Esta nova parte será enviada apenas para os assinantes pagantes. Assim, clique em Subscribe now para continuar lendo — ou espere o dia desconhecido em que eu terminar tudo e o outro dia desconhecido em que a editora publicar.
Vejam que em tudo isto — Herzen, passeatas contra Collor, Bacantes — há o mesmo tema: a morte do rei.
Mesmo que eu não consiga responder, lerei com interesse qualquer comentário a este texto. Em parte, esta é a ideia da newsletter. Desenvolver algo junto com os leitores. Obrigado!
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Sempre me perturba pensar nas balas de canhão quebrando a superfície congelada do rio Neva, levando homens e cavalos para o fundo. Os cavalos, claro, não mereciam nada daquilo, mas creio que hoje até os mais conservadores estariam do lado daqueles homens, oficiais do exército que tinham salvado a Rússia de ser invadida por Napoleão Bonaparte em 1812, que tinham visto a modernidade da Europa ocidental ao ir até Paris negociar tanto sua rendição quanto a restauração das monarquias europeias, que já estavam convencidos das ideias liberais, e queriam que a Rússia acompanhasse o movimento da História. O próprio rei da França, Luís XVIII, cujo trono fora restaurado pela força russa, tinha abandonado o absolutismo e adotado uma Carta, efetivamente uma constituição. O coronel Pavel Pestel, que tinha servido no exército durante a campanha contra Bonaparte, já tinha ajudado a rascunhar uma constituição, inspirada na dos Estados Unidos — uma república na América desde 1776.
Mais importante, aqueles oficiais queriam o fim da servidão na Rússia. Por sua brutalidade, essa servidão poderia ser comparada à escravidão brasileira; eles podiam querer uma constituição inspirada na dos Estados Unidos, mas não queriam a escravidão das Américas. A Revolução Francesa tinha abolido a escravidão em 1794; Napoleão a tinha restabelecido em 1802. Na Rússia, um servo podia ser condenado a servir o exército, e muitos desses servos tinham ajudado a proteger a Rússia e a derrotar Napoleão. Como, perguntavam-se aqueles aristocratas, olhar nos olhos de um servo que ajudou a dar à França uma monarquia constitucional e voltava para o absolutismo?
Pestel seria preso no dia 13 de dezembro de 1825 (e veja, até o Brasil já tinha uma constituição desde o ano anterior…), um dia antes de os revoltosos irem para a frente do Senado russo em São Petersburgo para pedir reformas liberais — reformas essas que tinham sido insinuadas pelo falecido tzar Alexandre I. Era uma oportunidade. O novo tzar ainda não tinha assumido, todos tinham achado que seria Constantino, irmão mais novo de Alexandre, mas corria o boato de que Constantino tinha recusado o trono. No entanto, muita gente já havia prestado o juramento de lealdade a Constantino. Seria, então, Nicolau, o mais novo, que seria o novo tzar? Aproveitando a incerteza, três mil homens puseram-se entre o Neva e o Senado. Nicolau apareceu em pessoa. Depois, mandou um porta-voz — que acabou sendo morto. Nicolau mandou a artilharia abrir fogo contra os revoltosos. Os que não morreram naquele dia de dezembro de 1825 foram enforcados em 1826 ou mandados para a Sibéria.
A Rússia teria de esperar a morte de Nicolau em 1855 para ter suas primeiras reformas liberais. A emancipação dos servos só aconteceu em 1861, com o tzar Alexandre II, filho de Nicolau.
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O período entre o levante dezembrista — que foi o nome com que essa revolta ficou conhecida — e a execução dos revoltosos em julho de 1826 foi para Alexander Herzen o período do seu «despertar político», como ele contaria décadas depois em Passado e meditações, suas inclassificáveis memórias. Herzen na época era um garoto: nascido em 1812, tinha apenas treze anos quando o levante ocorreu. Ele conta que, primeiro, nem lhe ocorria que o tzar um dia pudesse morrer. Diz que tudo era um pouco confuso, que passou um ano achando que os dezembristas também quisessem que Constantino fosse o tzar, mas que ficou impressionado com a falta de solidariedade dos aristocratas que frequentavam sua família igualmente aristocrática com os oficiais mortos e condenados. Mais importante, ele percebeu que estava do lado dos condenados, que ele também defenderia aqueles ideais liberais, e de fato os defenderia até sua morte em Paris, exilado, proibido de entrar na Rússia, em 1870.
Entre dezembro e julho, o pai de Herzen lhe dizia que não, que de jeito nenhum os revoltosos seriam condenados à morte, que aquilo tudo era só para impressionar as pessoas, que a pena seria, como sempre, comutada. Não foi.
Num ambiente hostil, com um senador frequentando a casa, com um pai figurão que tinha até servido de ponte entre o tzar Alexandre e Napoleão Bonaparte, Herzen não podia falar com ninguém a respeito do que pensava. «Naquela época, minha solidão me pesava ainda mais do que antes. Eu queria confidenciar meus pensamentos e meus sonhos, discuti-los, obter a aprovação de alguém. Considerar-me um “criminoso” me deixava orgulhoso demais para que eu não falasse disso, mas eu também não falaria com qualquer um.»
A primeira pessoa com quem Herzen pôde conversar foi seu tutor, um francês de nome Bouchot. Herzen não tinha grandes simpatias por Bouchot, nem Bouchot por Herzen. Um dia, porém, durante uma aula, surge uma brecha inesperada para que eles se entendam. O aluno pergunta ao tutor por que o rei Luís XVI tinha sido condenado. «Porque era um traidor da pátria.» Herzen vai mais fundo: «Se estivesse entre os juízes do rei, o senhor também teria assinado essa sentença?» «Com as duas mãos», responde Bouchot. Assim, compartilhando «sentimentos regicidas», a relação entre aluno e tutor passa da desagradável formalidade a uma quase amizade. O tutor relaxa, passa a contar causos de 1793, e, se antes dizia que Herzen não daria em nada, agora passa a dizer ao adolescente que ele será salvo por seus generosos sentimentos liberais.
Algum tempo depois Herzen recebe a visita de uma prima mais velha — e lembremos que, no século XIX, a visita de um parente distante significava uma estadia de semanas ou até de meses. Ele com 14, ela com 18, 19 anos, e tendo a bondade de tratá-lo não como um molequinho, mas como um igual: Herzen sempre se ressentira de ser tratado como criança. Para completar, o igualitarismo etário da prima também se traduz na defesa de ideias liberais e dos dezembristas. Não é difícil imaginar a força desse laço: se, entre os jovens de uma casa, há naturalmente uma cumplicidade que os distingue dos mais velhos, essa cumplicidade reforçada pela adesão a ideais proibidos representados por revoltosos condenados… A conspiração inevitavelmente era aprendida desde cedo.
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O despertar político de Herzen é de certa forma uma reação ao despertar do próprio Nicolau. Pode ser curioso falar em «despertar», mas um despertar nada mais é do que a percepção de que as coisas podiam ser de outro jeito. Um garoto percebe que o tzar pode morrer, que o novo tzar pode ser mau, que ele pode matar homens bons. O tzar, por sua vez, também vê que o monarca de outro país pode ser guilhotinado, que é perfeitamente possível que a monarquia seja substituída por uma república, que um monarca pós-revolucionário como Luís XVIII aceite uma constituição que limite seu poder. Para Herzen, para Nicolau, para todos os países do mundo, a ingenuidade tinha acabado.
As execuções dos dezembristas em 1826 prenunciavam o que seria a reação de Nicolau. Certamente ele não tentou contemporizar nem «acompanhar o movimento da História». Ao invés disso, dobrou a aposta no absolutismo. Tanto que em 1832 chegou a restabelecer a pena de morte na Rússia para crimes políticos.
Em 1834, o próprio Herzen chegou a ser preso pouco depois de seu amigo Ogarev. Graças a um informante, a polícia invadiu um jantar no qual se cantava uma canção de Sokoloski chamando Constantino de «feioso» e o tzar Nicolau de «canalha». A correspondência dos presentes foi apreendida, e nela foram lidos os nomes de Herzen e de Ogarev. As cartas de Ogarev foram apreendidas. Após semanas passadas em duas prisões diferentes — numa das quais Herzen podia ouvir os gritos dos pobres torturados, o que outra vez o deixou absolutamente a par de seus próprios privilégios de aristocrata —, Herzen conheceu a acusação, soube das cartas, e foi interrogado. Perguntaram-lhe o que ele queria dizer com a seguinte frase, encontrada numa carta para Ogarev: «As cartas constitucionais não servem de nada, elas são contratos entre o senhor e os escravos; o problema não é melhorar a situação dos escravos, mas libertá-los.»
Depois da farsa do interrogatório, Herzen acabou exilado dentro da própria Rússia, proibido de ir a Moscou e a São Petersburgo. Em 1836, chegou-lhe a edição da revista Telescópio em que eram publicadas as «Cartas filosóficas» de Chaadayev, capitão de cavalaria. As «Cartas» condenavam o atraso da Rússia em relação à Europa. Por elas, o editor de Telescópio foi mandado para a Sibéria, e Chaadayev, declarado insano, condenado à prisão domiciliar, e a assinar um documento comprometendo-se a não escrever mais nada. (Ele ainda escreveria a «Apologia de um louco».)
A brutalidade de sempre para os servos; o silêncio imposto aos aristocratas. Essa imposição, porém, encontrava conivência. Herzen já tinha notado que os homens não ousavam dizer nada em favor dos dezembristas na época das execuções em 1826; em 1834, para seu próprio pai, sua prisão totalmente farsesca era motivo não de revolta, mas de vergonha.
Por isso a geração de Herzen acabou conhecida como a geração dos «homens supérfluos».
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Vinte e seis anos depois, já com décadas de exílio nas costas, Herzen escreveria o ensaio «Os supérfluos e os biliosos», em que rememoraria toda essa época e apresentaria sua visão dos «homens supérfluos».
Pessoalmente, creio que eram homens dominados pela acídia: a sensação de que aquilo que desejavam era inatingível. Não se tratava nem mais de querer que a Rússia de fato se modernizasse, mas de querer poder apenas discutir isso abertamente. Se uma piada num jantar podia levar à apreensão de cartas, se nem na correspondência privada você podia falar abertamente, se era preciso, como no episódio de Herzen com o tutor, esperar uma brecha oportuna, e mesmo assim correr um risco, não admira que «as mentes dos homens fossem mantidas na agonia e na dolorosa irresolução, sem saber onde encontrar saída ou em que direção mover-se».
Até porque você podia ser considerado insano e proibido de escrever.
E, além da conivência da sociedade, ainda havia a indiferença do povo:
…cada acontecimento, cada ano confirmava para eles a assustadora verdade de que não apenas o governo estava contra eles, com forcas e espiões, com a argola de ferro com a qual o carrasco comprimiu a cabeça de Pestel, e com Nicolau pondo essa argola em toda a Rússia, mas que o povo, também, não estava com eles, ou ao menos era totalmente estranho a eles. Se o povo estava descontente, os objetos de seu descontentamento eram diferentes. …
Fica fácil entender o adjetivo «supérfluos»: aqueles homens eram tratados como incômodos, desnecessários, pessoas que vinham apenas levar os demais a perder tempo.
O epíteto «homens supérfluos» veio da novela Diário de um homem supérfluo, de Turguêniev. É muito fácil achar que a novela não tem nada a ver com a situação daqueles homens, mas há uma semelhança fundamental. Nela, o narrador Tchulkatúrin conta como mal conseguiu disputar o coração de Liza, uma jovem provinciana. Pouco depois que ele a conhece, um príncipe entra no páreo e Tchulkatúrin se torna alguém menos do que um coadjuvante — é impagável a cena em que Liza vai entrar num cômodo, vê Tchulkatúrin pelo espelho, e desiste de entrar. Só que o príncipe vai embora, deixando Liza triste e arrasada. Tchulkatúrin pensa: chegou a minha vez. Só que, mesmo nessa nova oportunidade, ele é preterido antes mesmo de sequer ser considerado…
Ou seja: Tchulkatúrin estava diante de rivais poderosos demais para sequer competir. Se Herzen, Ogarev, e outros intelectuais pudessem discutir abertamente suas ideias liberais, eles poderiam entrar na competição, poderiam sentir que algo caminha, que algo está em jogo; o tzar Nicolau, porém, decidiu eliminar o jogo por completo. Daí que Tchulkatúrin, Herzen, e Ogarev tenham se tornado supérfluos.
Nicolau, aliás, que Herzen descreve no começo de suas memórias como «uma Medusa bigoduda de cabelo curtinho». Nicolau, o ser paralisante que, em «Os supérfluos e os biliosos», estava «refletido em cada inspetor, em cada diretor de escola, em cada tutor e guardião» e «confrontava o menino na escola, na rua, na igreja, e até em certa medida na casa dos pais».