018 Sobre o fim do ministério da Educação
Sim, isso mesmo: o Estado não deve tutelar a educação. Não funciona e é imoral
Pela primeira vez desde o terceiro covid atraso a newsletter, por pura falta de forças. Estive no médico; começarei um tratamento de suplementação intravenosa para recuperar-me. Expliquei que um dos sintomas que eu tinha era «burrice»: depois das primeiríssimas horas do dia, muitas vezes tenho dificuldade para entender o que leio; o foguinho interior que me faz traduzir, preparar aulas, escrever, etc., não era aceso. E então descobri que aquilo que eu chamava de «burrice» é chamado, em porto-inglês contemporâneo, de brain fog. O que, francamente, pode ser acrescentado como exemplo do fracasso da nossa... «educação nacional».
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Semana passada escrevi no Instagram um texto a respeito da extinção do ministério da Educação. Até o fim dos anos 1980, creio, essa ideia ainda não soava tão absurda quanto soa hoje, porque até os anos 1980 ainda havia a dinossáurica esquerda libertária, que tinha lido A sociedade sem escolas, do padre austríaco Ivan Illich.
Um dos filósofos que mais admiro, o francês Jean-Pierre Dupuy, trabalhou com Illich em seu centro de estudos em Cuarnevaca, no México, e juntos eles formularam a ideia de «contraprodutividade», um ótimo instrumento para criticar a sociedade moderna. Num livro de Dupuy, ele dá o exemplo do carro: você compra o carro para ir mais rápido para o trabalho, mas fica no engarrafamento (aliás, sabiam que, em Paris, o limite máximo de velocidade passou a 30 km/h, chegando a 50 km/h apenas em algumas avenidas?) e trabalha para pagar pelo próprio carro que leva você para o trabalho.
Isso para nem falar do sistema que é criado para tornar algum processo mais eficiente e que, como sabemos — essa é uma das questões principais de todos os filmes e séries policiais —, logo passa a trabalhar para si mesmo. Coerente consigo, o próprio Illich fechou seu próprio centro de estudos quando achou que ele tinha ficado grande demais: o centro não iria mais servir um propósito fora de si mesmo, mas apenas trabalhar para sua própria sobrevivência.
E nem mencionei — não posso começar pelo escândalo — pela crítica que a esquerda libertária fazia ao modo de vida capitalista e que lhe dava autoridade moral: nesse modo de vida, realidades espirituais são inteiramente obliteradas, esquecidas, tornadas obsoletas, descartadas. O objetivo da «revolução» seria devolver essas liberdades. Você podia criticar a revolução, criticar o ideal, criticar a hipocrisia, criticar a insanidade, mas — e eis algo que eu nunca pensei que fosse dizer — pelo menos havia alguém para dizer que aquilo que os franceses chamam de métro, boulot, dodo («metrô, trabalho, dormir»), isto é, passar um tempão no transporte, trabalhar até o esgotamento, depois entorpecer-se com o entretenimento de massas e dormir, era uma bela porcaria de vida.
Criança, você sonhava com o dia em que teria a oportunidade de esgotar-se fazendo um trabalho que você talvez nem entenda direito, para enriquecer outra pessoa, e depois ver Netflix até ficar nauseado e tomar um remédio para dormir?
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Mas o ministério da Educação. Ainda criança, percebi que havia algo que passei a chamar de «dogmas», no sentido de que eram pressupostoo que não eram questionadas. Ao se deparar com uma deles, o sujeito simplesmente parava de pensar. O exemplo de «dogma» que me interessa aqui é o seguinte: se eu acho que existe algum problema, cabe ao governo resolvê-lo.
Esse «dogma» ainda veio se associar à crença cada vez mais difundida na tecnocracia. Em algum lugar li, não faz muito tempo, que a crença fundamental do governo soviético em seus últimos dias era exatamente essa. Se existe um problema, o governo faz um plano e resolve. A única questão é saber qual é o melhor plano, é ser capaz de ajustar o plano — mas a ideia de que tudo será resolvido com um plano do governo nunca é questionada.
Assim, existiria um problema: as massas — massas essas que foram criadas pela Revolução Industrial; antes existiam pessoas, agora o que existe é mão de obra potencial — precisam de educação. Essa educação, claro, não deve nem de longe ser entendida no sentido liberal e forte da palavra, no sentido do ex ducere que motivava senhores romanos a escravizar sábios gregos para que educassem seus filhos. Ela deve ser entendida no sentido da eficiência, com um verniz para disfarçar, porque afinal pessoas efetivamente educadas existem por aí, e, vejam, se não é possível imitar a liberdade de espírito, ao menos é possível imitar a polidez e cobri-la com alguma «cultura geral».
É com essa concepção de educação como adestramento que volta e meio leio aquelas reclamações de que «o Brasil precisa de mais engenheiros». Isso significa que os interesses industriais precisam de mais mão-de-obra qualificada. As pessoas que falam disso não raro têm uma filha que faz a graduação em medieval studies no exterior. É um pouco como aquela história de «sou ateu, mas o cristianismo é bom para a sociedade»: «seja cristão você, para que eu possa dormir à noite».
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A perda espiritual é evidente. Nosso ateu «que reconhece o valor do cristianismo» propõe que os outros vivam na mentira para que ele viva na verdade; a zelite brasileira deixa os filhos estudarem qualquer coisa em qualquer lugar do mundo, enquanto espera que o ministério da Educação brasileiro lhe entregue trabalhadores qualificados.
Essa negação da verdade ainda aparece em outros planos. Um comentador do meu texto disse que, antes do ministério, a maioria das pessoas não estudava. Mas alguém teve a experiência de realmente estudar? A escola não é uma farsa? Você não esquecia tudo imediatamente depois de terminar a prova? Quando chegava o fim de semana você não sentia alívio? (Acho que daí vem a confusão comum entre alívio e prazer. Em 1991 vi o Caetano Veloso dizer que seu maior prazer era fazer xixi. Mas isso é um alívio, pensei.) Você não se torturava perguntando por que tinha de fingir aprender tal ou qual coisa? Quando penso na maioria das aulas que tive na escola, só posso pensar que foi algo doloroso para mim e vergonhoso para o professor. Nos unimos na humilhação conjunta proporcionada pelo ministério, que obriga pessoas a passar várias horas por dia juntas, falando de um assunto do qual elas não querem falar.
Como levar a sério por um único segundo um projeto de educação que ignora a simples realidade de que a vasta maioria dos alunos nem quer estar ali, nem jamais será convencida?
Quando eu estava no segundo ano do segundo grau, em 1993, o professor João Paulo, de História, um esquerdista das antigas, disse à nossa turma: «Na sala dos professores reclamam que você fazem zona demais. Pois eu acho que vocês são é comportados demais. Passam horas trancados nessa sala, nessas carteiras apertadas.» Houve alguns segundos de silêncio, mas acho que nem meus colegas conseguiram deixar a ficha cair — se deixassem, era a revolução.
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Ainda mais comovente é quando me dizem que, na verdade, o ministério é muito bom, os documentos são abrangentes, as diretrizes são amplas, têm bom senso, dão muita liberdade.
E o problema não é óbvio? «Dão» muita liberdade. Se o governo «dá» liberdade, então não existe liberdade. A objeção moral ao controle estatal da educação é incontornável. Alguma coisa bem proposta e que ainda por cima pareça funcionar bem — voltemos a Ivan Illich, você pode lembrar dos seus 857 anos na escola como uma tortura, mas os burocratas têm planilhas de Excel com índices que mostram um desempenho satisfatório do sistema, e zás, eis a «verdade»; afinal, o sistema funciona para si — pode perfeitamente fazer você esquecer da verdade, da verdade que é vivida.
Muitas vezes me perguntam se acho mesmo que as máquinas vão substituir os tradutores. Só posso dizer que sim: não são só as máquinas que melhoram, são as pessoas que pioram também. Quem vai dizer se uma tradução é boa? Ué, o leitor. Mesmo que ele não conheça o original, ele ainda pode ver se as frases fazem sentido, se não há nada de estranho, se, por exemplo, um clássico estrangeiro também foi escrito num português magistral.
E esse é um caso em que a eficiência da máquina dispensa a pessoa de um trabalho intelectual.
No caso do ministério da Educação, o que tivemos, em concomitância com o aumento do número de pessoas escolarizadas e até com formação superior, foi, apenas para ficar na minha área: o quase desaparecimento das revistas literárias; a redução significativa da tiragem média inicial de romances brasileiros (nos anos 1960, eram 3 mil exemplares; hoje, são 2 mil); a clara redução do vocabulário médio (A ladeira da memória, publicado em 1950, chega a impressionar nesse quesito, e isso em comparação com a melhor literatura contemporânea); e, como eu disse ao longo de todo este texto, uma redução claustrofóbica do horizonte espiritual — a moralidade do ensino obrigatório não é discutida, é um dogma — e do horizonte intelectual — questionar a máquina é obsoleto, só se concebe investigar a maneira mais eficiente de fazer o mecanismo girar.
E qual era mesmo o propósito da educação?