020 «Nem tudo se desfaz»
Será que o filme é urgente demais para que falemos dele, e não das coisas de que ele fala?
1 Tom Stoppard na Rússia
Tom Stoppard ficou muito surpreso com a recepção que os russos deram a suas peças sobre as origens do movimento revolucionário russo. Em Londres e em Nova York, a trilogia The Coast of Utopia foi criticada pela qualidade da encenação. O que interessava era o texto, a direção, o desempenho dos atores. A plateia ia jantar depois da peça discutindo a qualidade da iguaria servida no teatro. Em Moscou, por outro lado, o que interessava eram as «mensagens» do texto. Isso que Herzen falou, você concorda? Ou está mais para Bakunin? Acha que o tzar, na época, devia era ter dado um pau nessa turma toda?
A abordagem dos anglos passa por «madura». A coisa representada não importa muito, o que importa é a representação. Por trás dessa abordagem parece haver a premissa de que as coisas importantes já foram resolvidas, agora só vamos discutir a cosmética. Vamos comer bife, agora só resta discutir se bem passado ou mal passado. Não esperamos realmente que o teatro mude nossa maneira de pensar, só queremos entretenimento de gente culta.
A segunda abordagem, a russa, é também a popular, tem torcida, tem envolvimento com os personagens. É quente. O espectador quer amar e odiar. Se não gostar de bife, não vai nem querer discutir o que fazer com ele.
Gosto do Brasil porque estamos mais próximos dos russos. Se isso é ser «subdesenvolvido», melhor para nós. A História não acabou. Tudo está em questão. Obras de arte podem ser relevantes. E é verdade, isso pode ser cansativo às vezes, o fato de tudo estar em jogo pode dar nos nervos — mas rende uma arte muito mais interessante.
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Logo vou chegar no filme Nem tudo se desfaz, de Josias Teófilo, mas foi só escrever as linhas acima que me lembrei da recepção a Pais e filhos, de Turguêniev, no século XIX. Ninguém parou para discutir as qualidades artísticas do romance. Os personagens mobilizavam tanto os leitores (entre os quais estava o tzar Alexandre II) que eles só queriam saber de defendê-los ou de atacá-los. Alexander Herzen, seis anos depois, usou a figura de Bazárov para descrever a psicologia de três gerações. Eram frases apaixonadas e generalizações empolgantes. Não havia «prudência e sofisticação», não havia um suposto consenso acadêmico que serviria de poder moderador. Os russos interpretavam e reinterpretavam a si mesmos o tempo todo.
O destino do documentário Nem tudo se desfaz deve ser o mesmo, ao menos por algum tempo. Tudo ali é tão próximo de nós, tudo nos mobiliza tanto, que é difícil dar um passo atrás e ser londrino ou novaiorquino. Para agravar a situação, o documentário ainda arrisca uma tese, dita com todas as letras pelo narrador — e é a última frase do filme, aquela que levamos para casa:«Bolsonaro encarna o epicentro de um processo revolucionário que começou nas manifestações de 2013».
«Será mesmo?» Se, após a pré-estreia, eu não tivesse planos de tirar 25 tubos de sangue do meu corpo num exame, se não estivesse já com calafrios proporcionados pela segunda dose da Pfizer, eu só veria uma solução: pedir um vinho, porque detesto chope, e discutir isso até perder a voz.
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Não é só a mim que a tese empenha demais. No Globo de hoje (25 de setembro de 2021), Pablo Ortellado diz logo que o filme tem uma leitura equivocada. Antes de julgar a obra de arte, julga a tese. E vejam, não estou censurando Ortellado, estou dizendo que esse é um risco desse tipo de obra, dirigida a esse tipo de público que somos nós. Não somos jurados de festival.
Agora, se Ortellado foi até o fim com interesse, assim como vamos até o fim de Pais e filhos, a vitória é da obra — gostando você ou não dos personagens ou da tese.
Eu mesmo apareço no filme e não consigo fugir dessa sina de usar a obra como pretexto de discussão, em vez de londrinamente buscar o diálogo com outros membros do júri. O espectador pode ver-me em 4k, no esplendor do meu sobrepeso, na casa do meu amigo Jayme Chaves, aqui em Copacabana, dizendo que a nova direita tem seu lado de homem do subsolo. Assim como o narrador do romance de Dostoiévski, ela se convida para um jantar mesmo que ninguém vá com a cara dela, e fica revoltada porque não consegue determinar o rumo da conversa. Essa atitude do personagem, é claro, equivale à nossa velha cobrança de que a«a mídia» não fala disso ou daquilo.
(Para os personagens do jantar, talvez fique uma advertência: vocês não quiseram conversar com a nova direita, daí veio o Bolsonaro.)
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Não resisto a usar o filme como pretexto. (Não pude perder a voz tomando vinho.) Preciso deixar uma pergunta. E sou eu mesmo enxergo esse lado particularmente subsolesco na nova direita. Vamos lá.
Memórias do subsolo é um romance de 1867. Demônios, que é como que um documentário dos primeiros revolucionários, terminou de ser escrito por Dostoiévski em 1871. A conexão entre o homem do subsolo e a revolução é evidente: basta um Piotr Stepanovitch, o empreendedor da revolução, para explorar e direcionar os ressentimentos de cada homenzinho do subsolo que gravita em torno de Stavróguin para abalar as autoridades da pequena cidade de Skvoresníki, seu laboratório. Stepanovitch é um verdadeiro Anticristo — um Anticristo realista, de adulto, não um moleque com 666 no couro cabeludo.
Alguns paralelos entre a Rússia oitocentista e o Brasil de hoje ainda me parecem claros. Jogar fogos de artifício contra o STF me parece típico do homem do subsolo: impotente, quer ser se fazer sentir. (Na Rússia real, o negócio foi mais longe, com atentados à vida do tzar.) O ministro Alexandre de Moraes, quando usa sua guarda pessoal, seus pretorianos da fofoca, para dar queixa na delegacia contra pessoas que falaram mal dele, faz pensar no tzar Nicolau, cuja polícia secreta invadia jantares em que os participantes faziam piadinhas antimonárquicas. Crimes contra o Estado. Herzen mesmo acabou preso numa dessas: vasculharam a correspondência privada de um piadista, encontraram cartas de Herzen esculhambando o tzar, e pronto, meses de cadeia, vergonha na família, etc.
Assim… se a nova direita tem mesmo algo de subsolo, o mesmo subsolo russo, se Bolsonaro «encarna o epicentro de um processo revolucionário», já devo, então, começar a vender tudo e comprar as passagens?
No Brasil, ou talvez especialmente no Rio de Janeiro, que sempre parece estar a um passo do caos, essa hipótese mobiliza demais. É difícil bancar o londrino e falar do filme como um jurado de festival. Vou insistir: é até difícil parar de falar daquilo de que o filme fala.
Talvez, como Tom Stoppard, Josias Teófilo fique um pouco surpreso. Talvez, como bom brasileiro, não fique nem um pouco.