021 Ulisses: saqueador, naufragado, ou...?
Esses grandes significados filosóficos não estão nos mitos, mas são atribuídos a eles
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Preciso começar com uma confissão: há muitos anos, décadas, desde antes de estudar a teoria mimética, implico com a ideia de que «o mito X representa tal coisa». Sem entrar na visão que a teoria mimética tem do mito, basta lembrar que a palavra grega mythos significa apenas «história» (e detesto «estória», que jamais usarei).
Os mitos gregos foram tão trabalhados e retrabalhados pela literatura. Calímaco de Cirene, nascido 310 anos antes de Cristo, funcionário do Museu de Alexandria — Museu, a casa das musas; talvez o leitor conheça este museu como a Biblioteca de Alexandria — escreveu vários hinos para demonstrar sua erudição. Conhecia vários mitos relativos a vários deuses. Ele nunca disse que tal mito representava a alma não sei quê fazendo a grande coisa metafísica. Por outro lado, assim como um Sófocles (nascido cerca de cem anos antes), ele muito conscientemente se aproveitou de mitos para sua arte. É esse trabalho, consciente, deliberado, intencional, que faz com que o mito «signifique» algo. Esses artistas não estão interpretando os mitos; estão aproveitando os mitos, assim como Stendhal teve contato com dois casos policiais antes de escrever O vermelho e o negro.
Sei bem que aqui estou indo contra o senso comum que vê nos mitos uma espécie de tesouro de sabedoria. Estou dizendo que a sabedoria foi projetada neles, não tirada deles. Um dos melhores exemplos disso é a história da viagem de Ulisses de volta a Ítaca, que está no miolo da Odisseia (ela própria já um tratamento artístico), e é dele que vou tratar, apenas citando a maneira como a história foi retrabalhada por diversos autores, que deram a essa viagem sentidos diferentes.
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Tudo isso me ocorreu enquanto eu lia o livro Dante: The Poetics of Conversion, que reúne artigos de John Freccero sobre Dante. Freccero era professor de Stanford e grande amigo de René Girard. Foi Yvone Freccero, esposa de John, quem traduziu para o inglês Mentira romântica e verdade romanesca, o primeiro livro de Girard.
Pois bem. No primeiro artigo, «The Prologue Scene», Freccero primeiro tenta explicar o que significa o peregrino Dante começar a Comédia tentando subir um monte sem conseguir, e depois relaciona isso com o poeta Dante ter posto Ulisses no inferno, naufragado.
A explicação é simples. O cristão Dante não pode subir o monte sozinho: precisa ser humilde e aceitar a ajuda de outra pessoa — aliás, até chegar ao último céu do Paraíso, ele receberá mais de uma ajuda. Dante pretende, acompanhando santo Agostinho, criticar os filósofos pagãos, que, por mais sublimes que fossem, julgavam que o homem poderia chegar a Deus por conta própria. Por isso é que os neoplatônicos interpretaram a viagem de Ulisses de volta para Ítaca como um símbolo do regresso da alma para Deus ou para o que for que houver de Bom lá do outro lado.
Dante Alighieri pega esse símbolo que é a viagem de Ulisses e diz: «Não». Põe Ulisses no inferno, e lá no fundo. A história está no Canto XXVI. O Ulisses de Dante, ao se aproximar de Ítaca, naufraga por causa de um tufão.
Todos os nobres sentimentos associados a Ulisses são desmistificados. O Ulisses de Dante não está preocupado nem com o filho, nem com a esposa Penélope, que é o modelo mesmo da fidelidade. O que esse Ulisses tem é Wanderlust.
nem de filho ternura, nem afeta
pena do velho pai, nem justo amor
que alegraria Penélope dileta,em mim puderam vencer o fervor
que me impelia a conhecer o mundo,
e dos homens os vícios e o valor […]Comédia, «Inferno», Canto XXVI, 94-99, trad. Ítalo Eugênio Mauro (Rio de Janeiro: Editora 34)
Neste momento, devo dizer que Dante nunca leu a Odisseia. Ele não sabia grego, e só conhecia Ulisses pelas fontes latinas. A professora Teodolinda Barolini, responsável pelo site Digital Dante, explica que, na Eneida, Virgílio (o primeiro guia de Dante na Comédia), refere Ulisses como «inventor de crimes».
Isso, aliás, confere com o epíteto de «Saqueador de Cidades» que Ulisses dá a si mesmo na Odisseia. Após cegar o ciclope Polifemo e fugir, ele diz:
Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar
quem foi que vergonhosamente te cegou o olho,
diz que foi Odisseu, Saqueador de Cidades,
filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio.”
Lembro até da minha impressão ao ler a Odisseia inteira como adulto pela primeira vez. Eu, com os pendores neoplatônicos da época, esperava altos significados simbólicos. A impressão que tive foi que era óbvio que o texto era essencialmente um texto de aventuras, sem nenhum significado oculto.
Quem insere «simbolismos» em narrativas (100% do simbolismo dos «mitos» foi inserido por filósofos muito depois do surgimento dos mitos) são sociedades secretas, ou então pessoas como Dante, que escrevem dialogando com uma tradição. O segundo artigo do livro de Freccero, por exemplo, tenta explicar qual dos dois pés é «o pé mais firme» que Dante menciona no primeiro canto do «Inferno». Não é uma questão de simbolismo esotérico, é uma questão de referência a uma tradição comum que hoje só é conhecida por eruditos — mas que, nesse caso, você pode conhecer comprando um livro ou baixando um artigo.
Mais ainda, a Ilíada tem uma unidade muito clara. A Odisseia é claramente uma compilação, com pelo menos três partes bem distintas: a busca do filho Telêmaco pelo pai Ulisses, as viagens de Ulisses, e a chegada de Ulisses a Ítaca.
Provavelmente por isso a viagem de Ulisses continuou a ser reinterpretada segundo as inclinações de cada leitor.
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No século XX, o grego Kaváfis escreveu o famoso poema «Ítaca», sustentando que o importante era a viagem, não a chegada. O brasileiro Octavio Mora, na mesma linha, escreveu o poema «Ulisses» — realmente, um monumento — que tem como epígrafe nada menos do que o verso «Porque volvió sin regresar Ulises», do lindo poema de Miguel Ángel Asturias. W. H. Auden, parodiando Kaváfis com amor (Auden diz que Kaváfis é um dos poetas que admira), escreve a versão humorística de «Ítaca» em «Atlantis».
Em algum desses casos, podemos dizer que houve alguma «perversão» do tema da viagem de Ulisses? Só quem poderia dizer isso seria um filósofo neoplatônico que julgasse ter tomado posse da Odisseia.
Por associação, lembro ainda que na Praça de São Pedro, no Vaticano, há um obelisco egípcio. O imperador Calígula (aquele) mandou trazê-lo. O obelisco estava no local onde São Pedro foi martirizado. Sabe-se lá se havia um esoterismo egípcio no qual aquele obelisco tinha altos significados: todos eles são irrelevantes agora.
Claro que nada disso nos impede de questionar as ideias por trás do uso dos símbolos, mas aí estamos falando mais propriamente da coisa simbolizada, e entramos num terreno filosófico. Pode o homem, sozinho, voltar a Deus? Ou será que Dante Alighieri e a tradição cristã estão certos, e o homem precisa ser humilde e receber ajuda? E se você, por outro lado, for um ateu ou agnóstico do século XX, e admitir que bem, pelo menos Ulisses viveu aventuras interessantes, e isso é o máximo que se pode querer?
A história da viagem de Ulisses, aí, virou pretexto para discussão filosófica — e nada no texto mesmo da Odisseia me parece sugerir que seu autor, quem quer que seja, tenha tido essa pretensão.