023 Os Nilos e Amazonas da menstruação
Aquela linguagenzinha de comitê cujo futum você sente de longe
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Dois reflexos ao ler pela primeira vez a expressão «pobreza menstrual»: primeiro, imaginar um videoclipe de Chico Buarque, com fotografia de Sebastião Salgado, mostrando tristes meninas multiculturais em preto e branco com uma voz fanha ao fundo:
Sangrou daquela vez como se fosse a úúúúltima…
(Como se fosse a última porque parecia que ia acabar, que não ia nem sobrar para o mês seguinte.)
E o segundo reflexo, acertado: crispar o rosto com o futum de linguagem de comitê, verificar no Google por desencargo de consciência se já não existe period poverty, ver que a barra do navegador já completa a expressão para mim, levar o lábio inferior à frente e erguer a sobrancelha, e, suspirando, mirar os primeiros resultados: Global Citizen, United Nations Population Fund…
Eu tinha pensado em escrever uma newsletter — talvez faça isso mesmo — para falar do meu cansaço interpretativo, porque semana passada eu dizia que os grandes significados metafísicos dos mitos foram inseridos neles por gente que os interpretava. E isso porque eu já vi como tudo pode ser reinterpretado, transformado em metáfora e em alegoria; já vi como nós das Umannas adoramos «elaborar um conceito» e encerrar um assunto…
…e confirmo isso com a «pobreza menstrual», que é um jeito muito indireto de sinalizar que muitas mulheres no mundo não têm dinheiro para comprar um absorvente. É indireto porque, diretamente, no famoso «papo reto» carioca, «pobreza menstrual» dá a ideia de pouco fluxo menstrual. Enquanto umas seriam as privilegiadas com Nilos e Amazonas de sangue, outras não teriam nem mesmo um mísero córrego urbano.
Mas as palavras são importantes. Elas levam consigo todo um contexto. Na Bíblia, o pobre é um outro Cristo, é um mandamento de caridade. Uma «pobre menstrual» não precisa ser ninguém em particular, porque ele é um problema de engenharia social. Aceitar a expressão «pobreza menstrual» é falar o idioma dos comitês e dos planejadores centrais — sem ser membro de comitê nenhum nem planejar nada.
A linguagem opera mágicas. Lembro de uma doutoranda em Letras que estudava os filmes de Fellini (pois é, filmes nas faculdades de Letras, as quais viraram centros de «estudos culturais», mas esse é outro problema) e, ao reclamar da falta de bolsas, da dificuldade de fazer pesquisas na Itália, lamentava a falta de «visão estratégica» do governo brasileiro.
Ela estava (como eu, aluno da UFRJ à época) enredada na máquina federal. Com uma expressão — «visão estratégica» —, a falta de bolsas se tornava um problema social, político, a ser resolvido por um comitê devidamente esclarecido. Visão estratégica!
Alguém dirá a esta altura que provavelmente eu passo quinze minutos por dia trancado no armário para esconder meu ódio dos pobres e especialmente das pobres menstruais. Que tudo isto é uma cortina de fumaça, que as mulheres estão sangrando Nilos e Amazonas por aí enquanto eu digito no meu MacBook Air burguês. Mas essa reação é apenas o automatismo dos santarrões.
(Para quem não fala português, santarronice é self-righteousness.)
Estou falando da expressão «pobreza menstrual», estou dizendo que a linguagem comum está cheia de expressões de planejador central. Você as usa o tempo inteiro. Depois o mundo não se conforma aos seus pensamentos de planejador central e você se sente oprimido e deprimido. Eu estou só dizendo que você não precisa ficar triste só porque o governo não é um déspota esclarecido como você. Sei lá, essa expectativa deve trazer muita frustração.
O filósofo Jean-Pierre Dupuy escreveu em algum lugar que o mundo em que só existem relações impessoais mediadas pelo dinheiro seria o próprio inferno. No contexto, ele falava do capitalismo. Mas não vejo porque isso não se aplicaria ao planejadorismo, que, com suas feitiçarias verbais, faz com que as pessoas sintam-se dispensadas de ser pessoalmente caridosas e zangadas por não serem as gestoras da sociedade.
(Nem vejo como alguém que esteja realmente preocupado com a menstruação alheia não poderia ir à farmácia e comprar umas caixas de absorventes para distribuir por aí.)