024 Algumas notas sobre a França
Se Zémmour for candidato, e a França for o próximo país a virar à direita...
Mandarei apenas para os assinantes pagantes um complemento mais pessoal a esta newsletter, explorando melhor aquilo que me parece o drama francês, e que é o drama de muita gente como eu: por que tenho de ser ultracompetitivo se minhas principais ambições neste mundo não são econômicas?
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Essas duas newsletters serão prefácios para um comentário mais direto a Zemmour. Estou lendo seu Le Suicide français para entendê-lo melhor.
(Enfatizo: para entendê-lo. Não acho nem mesmo que faça sentido eu, um brasileiro, ficar contra ou a favor. Desejo como cristão o melhor aos franceses, e, como brasileiro francófilo, desejo isso mais ainda. Só não me arrogo o direito de apontar o que é esse melhor.))
Se o jornalista Éric Zemmour anunciar sua candidatura à presidência nas próximas semanas, é provável que a França passe a aparecer mais no noticiário internacional. Como francófilo inveterado, e, pior ainda, como alguém que se tornou francófilo na vida adulta, preparei uma lista (deveras incompleta) de traços franceses que fui descobrindo e que me surpreenderam. Após torturar amigos com minha francofilia, vi (ou acreditei) que eles também se surpreenderam com essas descobertas.
Agora, sei que muitos brasileiros gostam de bancar o sommelier de países, que existe toda a ideia de que antigamente era melhor (até na Ilíada Nestor, o velho, dizia que antigamente era melhor), e vão me dizer que Paris acabou por causa disso e daquilo. Já eu escrevo com meus olhos de brasileiro deslumbrado. Criança, estudei numa escola em que também estudavam uma ou duas meninas de sobrenome Orléans e Bragança, e esse augusto ambiente elitista não me impediu de ser advertido pelos meus amigos de que eu terminaria mal visto por levar livros para ler na escola por puro lazer. Se brasileiros me dizem que há pobres na rua de Paris, bem, eu cresci no Leme, no Rio de Janeiro, e jogava bola com meninos de rua na pracinha, com a favela erguendo-se no fundo do cenário.
A França é para mim um mundo deliciosamente estranho, onde me sinto estranhamente bem.
Vamos lá.
1 A França leva sua Revolução de 1789 tremendamente a sério
Talvez o brasileiro não tenha a sensação de que vive numa «nação» porque não tem modelos em comum com outros brasileiros. Quando morei nos EUA, fiquei surpreso ao ver o quanto as discussões podiam ser remetidas aos founding fathers, e o quanto a ideia de que a independência era uma fundação, e a Constituição, um documento fundador. Mesmo que alas mais à esquerda queiram falar em «Constituição viva» (Living Constitution) para dar-lhe novos sentidos, ninguém fala em acabar com a própria Constituição.
No caso da França, não se pode dizer nem que a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 ocupe esse papel. O que ocupa esse papel é a ideia de república, e a ideia de que a Revolução é sim a fundação da república. Mais ainda, a república está associada à nação, e a nação é necessariamente popular. A república francesa é um projeto nacional do qual todo francês participa. Tanto que todo discurso político na França termina com estas duas frases: Vive la République. Vive la France. O brasileiro não costuma se lembrar que essa identificação entre o Estado popular (la République) e a nação (la France) está no cerne do projeto político iluminista.
Disso seguem-se dois corolários.
1.2 O secularismo francês
Primeiro corolário: a secularização é algo que os franceses levam profundamente a sério. Na França não existe discussão a respeito de crucifixo em repartição. Um político francês pode ser religioso, mas não participará de um comício religioso — como por exemplo fez Bolsonaro (e sei disso porque vi o filme Nem tudo se desfaz). Um político francês jamais terminaria um discurso dizendo «Deus abençoe a França».
Por isso, quando Michel Houellebecq publica Submissão e imagina um Estado francês que vai se islamizando, talvez o leitor brasileiro não imagine o quanto isso é escandaloso e absurdo para um francês.
1.3 Ser francês é um projeto político
Segundo corolário: se o brasileiro meio que espera que o Estado resolva tudo, o francês tem uma tendência (que foi se agravando nos últimos cinquenta anos, a julgar pelo que diz Marc Fumaroli no indispensável O Estado cultural, que traduzi e deve ser publicado pela editora Âyiné) a pensar tudo dentro do Estado, porque ser francês é um projeto político.
Nesse segundo corolário também noto uma peculiaridade linguística. Se você tem cidadania francesa, passaporte francês, mesmo que nem sequer fale francês, os franceses dirão que você «é francês». No Brasil nós dizemos que Fulano é franco-brasileiro, é naturalizado, é sei lá o quê. Não dizemos que um gringo que obteve a cidadania «é brasileiro». Os americanos, por sua vez, são os reis da hifenização. Nunca me esquecerei de um colega da New York University, a meus olhos 100% americano, que se apresentou a mim dizendo-se Italian-American. Na França, todo mundo que tem cidadania jurídica é francês e ponto final. Se eu um dia imigrar para a França, obtiver a cidadania francesa, e permanecer totalmente bilíngue, intelectualmente voltado para o Brasil, eu serei «francês».
1.4 Parêntese sobre a relação do francês com o Estado
Vale ainda observar que, para o francês, não confiar no Estado é algo próximo do inconcebível. A desconfiança com que as medidas sanitárias em tempos de pandemia foram recebidas abalou muitos intelectuais, que sentiram que não confiar nas boas intenções das autoridades seria a mesma coisa que um católico não confiar na Comissão Teológica Internacional. É algo muito diferente do Brasil, da Argentina, ou mesmo dos Estados Unidos, em que os governos sempre são vistos com certa suspeita. Na França, François Fillon perdeu as eleições presidenciais em 2017 «apenas» porque se descobriu que ele manteve a esposa como assessora parlamentar por alguns anos sem que ela realmente trabalhasse, arrumou empregos para os filhos, e recebeu três ternos de presente. A soma total não deve dar 600 mil euros, o que, aliás, parece bem pouco diante da fortuna de Fillon. Mas o que está em questão é o princípio.
2 A identidade francesa
A falta de hifenização das identidades culturais dá a uma cidade como Paris um sabor peculiar, que, nesse aspecto, a torna mais parecida com São Paulo do que com Nova York. Se em Nova York tudo é mantido por um inglês internacional e as diferenças são bem marcadas, em Paris você tem mais a sensação de unidade. Os restaurantes «étnicos» parecem mais tradicionais. Parece haver menos o clima de exotismo; o francês fica mais à vontade com o exotismo.
Um limite do francês está nesse projeto político. Assim, por exemplo, uma «diferença cultural» como o uso do véu no rosto pelas muçulmanas pode ser juridicamente rechaçado com base no… secularismo. E você pode muito bem ser brasileiro na França, viver de vender a cultura brasileira, ser um verdadeiro embaixador informal da cultura brasileira — desde que entenda que agora você também é francês, e está nesse projeto político com eles. Essa, em parte, é a assimilação que eles esperam.
Idealmente você também vai falar e escrever francês muito, muito bem. Sempre digo que o segredo para ser bem tratado na França, mesmo sem falar uma palavra de francês, é dizer bonjour a qualquer pessoa. Demonstre alguma deferência pela cultura francesa e pronto.
Por isso, o que choca os franceses nas comunidades muçulmanas não é de maneira nenhuma elas serem muçulmanas, mas o fato de algumas delas não demonstrarem nenhuma deferência pela cultura francesa, nem a vontade de pertencer a ela. A bem da verdade, me parece que muitas portas se abrem na França aos que desejam a cultura francesa.
Por isso, também, muitos franceses rejeitam a ideia de que a França possa ser um país multicultural ou um país com múltiplas comunidades. Num episódio da série política Baron Noir, as mães de uma escola da periferia pedem que haja na escola «alunos brancos»: se houver diversidade, se houver brancos, então os filhos terão uma educação «francesa», em vez de ficar no gueto. E essa reclamação não acontece só na ficção.
3 A presença francesa no mundo
Existe uma consciência forte na França de que o país não é mais o que era. O país que inventou o projeto político moderno foi substituído pelos Estados Unidos. Éric Zemmour nota que o general de Gaulle abriu a França para a China antes de Nixon abrir os EUA, mas que foi a abertura dos EUA que fez a diferença.
Também é muito sentido o fato de a última geração de intelectuais franceses a dominar o mundo (Foucault, Derrida, etc.) já ter morrido — e os franceses ainda sabem que essa dominação aconteceu pela via dos Estados Unidos. Os franceses dominaram as universidades americanas com a French theory, e dos EUA foram para o resto do mundo. Hoje, é claro, é a política identitária americana que vai crescendo na França e no resto do mundo, sem nenhuma contribuição francesa.
Lembro que uma vez, ouvindo o programa Répliques no Apple Podcasts, o apresentador Alain Finkielkraut observou: «o papa Francisco não fala francês, não é francófilo…» Como se falar francês e ser francófilo fossem a norma até outro dia. O detalhe é que eram mesmo.
Esse declínio é muito sentido em todas as áreas. Ao menos é muito comentado. É um argumento retórico sempre válido. Se, no Brasil, você pode argumentar que «o Brasil não vai para a frente por causa de X», na França você vai dizer que «a França está em decadência por causa de Y».
Ainda assim, não me parece que esse seja o dilema essencial francês. Estou falando de uma perspectiva puramente pessoal. Resumidamente, acho que o francês percebe que seu modo de vida — um país agrícola, que não se entregou a um modo de vida acelerado, nem foi arrasado pela competição, que ainda guarda alguma alegria de viver — está em perigo e talvez seja impossível preservá-lo. Falarei mais disso na newsletter paga.
4 A vida intelectual francesa
No começo falei de meus olhos de brasileiro deslumbrado. Pois bem. Eu fico deslumbrado ao entrar na FNAC da Rue de Rennes, em Paris, uma rua altamente turística, e ver gôndolas anunciando os ganhadores de prêmios literários. A ideia de que um prêmio literário vende livros é deslumbrante para mim. Você sequer sabe quem ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura? Ou o Jabuti? Pois é. Na França, os prêmios Goncourt, Renaudot, Médicis, e Femina vendem livros — e acho que ainda esqueci algum prêmio.
Isso aumenta uma sensação: a de que a vida intelectual e cultural, em Paris, é algo importante, integrado à cidade. No Rio, essa vida parece quase uma vida secreta. Em Buenos Aires ela também parece mais importante. Mas na França até os políticos podem ser ligados a intelectuais, e, desde a década de 1970, houve uma mediatização da vida intelectual (o que, sim, pode ser muito criticado). Isso faz com que professores universitários estejam sempre no rádio ou na TV. Lembro de ver René Girard num programa de entrevistas que parecia uma boate. Não me lembro de ver Steven Pinker no programa do Jon Stewart.
Um ponto muito peculiar e interessante da vida intelectual francesa é que muitas pessoas da velha guarda da esquerda tornaram-se críticas do identitarismo americano que cresce no país. O próprio Finkielkraut, Régis Débray, Elizabeth Roudinesco, Sylviane Agacinski…
Para mim, ler livros que tratam de questões quentes do momento — penso na coleção Tracts, da Gallimard — com uma perspectiva totalmente alheia à maneira powerpointizada de pensar dos americanos, com seus livros industrialmente bem escritos que parecem Ted Talks de 400 páginas… Sim, só por isso eu amo a França. Se morasse em Paris, acho que toda semana estaria em alguma palestra.
5 Séries francesas
Antes que me perguntem, as três séries francesas de que mais gostei foram Baron Noir (sobre política), Engrenages (um policial que você também encontra com o nome de Spiral, porque foi co-produzida pela BBC), e Le Bureau des légendes, de espionagem.
Elas não estão nos streamings comuns no Brasil. Por isso, você precisa usar o Google e ser criativo.