As inscrições serão reabertas assim que eu terminar de gravar um módulo adicional: «O que é estilo?».
***
Até Julien Sorel enfim deixar o emprego de preceptor dos filhos do casal de Rênal, poderíamos talvez acabar esquecendo que O vermelho e o negro é um romance de aprendizado. Muito rapidamente Julien se torna senhor da situação na casa da família, e logo depois vem a oportunidade de sua amante, a Sra. de Rênal, descobrir seus próprios talentos de manipuladora.
Assim que ele chega a Besançon para frequentar o seminário (o negro da batina), acontece algo interessante: ele sente outra vez o chamado do vermelho, isto é, da vida militar (por causa da cor do uniforme). Ele nota a fortaleza da cidade e imediatamente se imagina parte de um regimento encarregado de defendê-la. Esse momento é chamativo porque mostra como Julien Sorel sempre quer instrumentalizar os outros, sempre quer instrumentalizar tudo: seu primeiro pensamento, ao ver aquela novidade, diz respeito à própria carreira.
Essa pequena atitude é crucial se você pensar nos termos da «conversão romanesca» do René Girard, a qual é marcada pelo desaparecimento do desejo de «seduzir e dominar». É só depois de imaginar-se bem-sucedido ali que ele se deixa «entreter» pela fortaleza, estudando-a.
Agora, pouco depois de imaginar que defender Besançon num regimento faria bem para sua carreira, ele sente timidez diante de um mero café. Ele, um provinciano, pode entrar ali?
O talento do romancista está em mostrar esses sentimentos contraditórios. Aliás, esses sentimentos contraditórios, sucedendo-se muito rapidamente, essa oscilação vertiginosa, isso já é um momento do «subsolo» de Dostoiévski.
Eis que Julien recobra a «coragem» e a impetuosidade assim que vê a jovem garçonete Amanda Binet, que lhe diz como se comportar ali no café. Assim que se acalma, Julien imediatamente declara um amor furioso por ela. Nada mau para quem poucos dias atrás se despedia da amante — a Sra. de Rênal, esposa do prefeito de Verrières.
E logo depois, quando entra um homem no café — segundo o narrador, um amante da jovem Amanda Binet, a qual diz a Julien que se trata de um «cunhado» — ele imediatamente quer um duelo. Afinal, o sujeito entra e encara Julien; depois de falar com Amanda, encara Julien outra vez. O narrador então fala da «imaginação de Julien, sempre extremada».
De súbito, Julien ainda fica dividido: o duelo seria o fim da carreira eclesiástica com a qual ele sonha, mas pelo menos ele não teria levado desaforo para casa — e é aqui que entramos diretamente no Capítulo VII das Memórias do subsolo de Dostoiévski.
Por favor, não entremos num raciocínio puramente formal e circular, do tipo «para Julien, o bem maior é não levar desaforo para casa», como se todos os atos de uma pessoa sempre demonstrassem as suas «verdadeiras» motivações e não existissem motivações contraditórias. Se fosse assim, você nem precisaria trabalhar a própria motivação. Se fosse assim, você nunca teria cometido aquele erro que pôs tudo a perder.
Dostoiévski discute isso abertamente na parte VII de Memórias do subsolo. Um dos objetivos declarados do narrador desse romance é acabar com a ideia de que o homem está voltado para o bem, de que ele sempre busca a felicidade:
…tudo precisamente porque o homem, seja ele quem for, sempre e em toda parte gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo lhe ordenam a razão e o interesse; pode-se desejar ir contra a própria vantagem, e, às vezes decididamente se deve (isto já é uma ideia minha). […] E de onde concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata, vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade…
Memórias do subsolo, trad. Boris Schnaiderman, ed. 34, p. 39
Julien poderia ter arruinado todos os próprios planos por causa de um arrebatamento. Talvez outra pessoa, depois do ocorrido, pensasse assim: «Ainda bem que não me deixei levar, que não pus tudo a perder!» O narrador de O vermelho e o negro, porém, arremata: «Fazia apenas algumas horas que [Julien] estava em Besançon e já tinha um arrependimento.»
O detalhe mais interessante é que essa afirmação de independência de que fala o narrador de Memórias nada mais seria, no caso de Julien, no caso de tantos outros, do que a mais abjeta subserviência. Se qualquer um pode, com uma cara feia, levar você a arruinar todos os seus planos, então você na verdade é escravo de qualquer pessoa.
Um modo mundano de encarar essa questão é lembrar da diferença entre o desprezo e a indiferença. De certa maneira, o sonho do desprezo é ser a indiferença. Tente pensar em algo a que você é realmente indiferente, isto é, algo que você talvez já tenha visto mas que não te afetou em nada. Todos nós somos indiferentes a milhares e milhares de coisas. Você entra numa livraria e começa a ver os livros justamente na esperança de que algo faça você sair da indiferença. Não é justo eu dizer que «desprezei» quase todos os livros da livraria, porque eu nem sequer os notei, eu fui de fato indiferente. Isso não é maldade, não é me achar superior, é de fato um limite cognitivo humano.
O desprezo ainda procura o olhar de outra pessoa. Se você foi desprezado, você quer desprezar de volta. Se você não consegue encenar o desprezo de um jeito convincente para quem te desprezou, então você precisa encená-lo para um terceiro, para que o olhar de alguém confirme para você a superioridade que você quer ter.
Agora, eu não preciso convencer ninguém — nem a mim mesmo — de que sequer notei a maior parte dos livros na livraria.
Uma nota à parte: saindo do subsolo
Consigo imaginar um leitor que, afeito a códigos de honra, queira justificar com eles o desejo de Julien de duelar. Devo lembrar que o próprio narrador atribui esse desejo à «imaginação extremada» de Julien, e não fala nada de honra. Aliás, se lembrarmos dos cálculos do Sr. de Rênal ao aventar a hipótese do adultério da esposa, veremos que a «honra» passa longe dos personagens de O vermelho e o negro.
A questão é que a própria redução do problema a vantagens e desvantagens, como faz o narrador de Memórias do subsolo, já pressupõe uma espécie de economicismo humilhante.
Parece-me que o ideal é recusar integralmente essa maneira de ver as coisas: se eu, Pedro, acredito que ainda tenho coisas a ler, a escrever, a aprender, a ensinar; se creio que ainda posso proporcionar coisas boas aos outros, não faz sentido arriscar esse futuro por besteira.
A dificuldade aqui é a seguinte: parece que a melhor vingança é o desprezo. Mas não se trata de desprezar. Um cristão tem de amar seus inimigos. Trata-se de tentar fugir dessa lógica de competição.
Penso neste trecho de Bernanos. Como aquele trecho de Memórias do subsolo termina com «o diabo sabe o que é essa vontade», vemos aqui o diabo voltando como o «Anjo» que se recusa a servir:
Convencemos facilmente os ingênuos de que somos apegados à liberdade pelo tipo de orgulho expresso pelo non serviam do Anjo, e pobres padres vão repetindo esse nonsense que agrada sua tolice. Ora, precisamente, um filho das nossas antigas raças laboriosas e fiéis sabe que a dignidade do homem é servir. «Não existe privilégio, só existem serviços», essa era uma das máximas fundamentais do nosso Direito antigo. Porém, só um homem livre é capaz de servir, o serviço é por sua natureza mesma um ato voluntário, a homenagem que um homem livre faz com sua liberdade a quem ele quiser, àquilo que ele julga estar acima dele, àquilo que ele ama. Afinal, se os padres de que acabo de falar não fossem impostores ou imbecis, saberiam que o non serviam não é uma recusa de servir, mas de amar.
Georges Bernanos, A França contra os robôs, fim do cap. IV (a tradução deste trecho fui eu que fiz a partir do original)