…uma civilização desaparece com a espécie de homem, com o tipo de humanidade saído dela.
— Georges Bernanos, A França contra os robôs, cap. III
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Em vez de ter a súbita sensação de que está num sonho ruim, em que você não entende nada, ou, o que talvez seja pior, você entende, mas algo em você se recusa a acreditar, você pode ter a sensação de que está tudo bem e, a partir de um pequeno estranhamento, ir puxando um fio, e puxando, e puxando, até descobrir que está muito mais perdido do que achava que estaria, e ainda se pergunta se não era melhor ter ficado sem entender.
A cantora Marília Mendonça morre num desastre de avião; você nunca ouviu Marília Mendonça; você já ouviu falar dela e entendeu que ela é muito famosa; você nem sequer sabe como era a cara dela; o noticiário está cheio de Marília Mendonça; você não tem a menor ideia de como reagir a essa morte, e começa a pensar. E horas depois do acidente que matou a cantora, você começa a ver posts no Instagram explicando quais lições devem ser tiradas da morte de Marília Mendonça.
Nessa desconfortável perplexidade, você decide abrir no Kindle Amusing Ourselves to Death, de Neil Postman, e relê o seguinte:
Porém, não estou dizendo aqui que a televisão entretém, mas que ela tornou o próprio entretenimento o formato natural da representação de toda experiência. […]
Em outras palavras: o entretenimento é a supra-ideologia de todo discurso na televisão. Não importa o que é representado, nem de qual ponto de vista, o pressuposto maior é que aquilo está ali para nossa diversão e pra nosso prazer. É por isso que até nos programas jornalísticos que diariamente nos trazem fragmentos de tragédia e de barbárie, os âncoras nos instam a «vê-los de novo amanhã». Para quê? Você imaginaria que vários minutos de homicídio e violência bastariam para um mês de noites insones. Aceitamos o convite dos âncoras porque sabemos que não devemos levar as «notícias» a sério, que ali, por assim dizer, o negócio é só diversão. Tudo num programa de notícias nos diz isso — a boa aparência e a afabilidade do elenco, suas conversas agradáveis, a música empolgante que abre e fecha o programa, as filmagens vívidas, os comerciais atraentes — tudo isso e mais sugere que aquilo que acabamos de ver não é motivo nenhum de choro. Um noticiário televisivo, para falar claramente, é um formato voltado para o entretenimento, não para a educação, para a reflexão, ou para a catarse.
Então você se lembra: se algo está na TV, é entretenimento. Você sabe disso desde 1995. Você se lembra de Postman com seu perpétuo sorriso sarcástico no Departamento de Media, Culture, and Communication, no oitavo andar de 239 Greene St., onde até seu avô foi uma vez com você. Proustianamente, no meio da perplexidade, voltam essas memórias.
O fio já foi um pouco puxado. Antes da internet, havia a TV. Mas quando só havia a TV, as pessoas podiam equivocar-se achando que noticiário era a parte «séria» e Friends era a parte de entretenimento. Hoje, cursos em que você não escreve uma única linha prometem transformar sua vida, e a palavra «formação» é usada para «conteúdos em vídeo» que… serão aulas? Neil Postman dizia que a TV só pode ser educativa se a câmera ficar parada o tempo todo.
Então é preciso puxar mais o fio… Se você nasceu em 1977, por aí, talvez até acredite na TV educativa… Mas, se você nasceu por volta de 1997, a ideia de um noticiário permanente, o tempo todo, na TV, na internet, parece a coisa mais real do mundo, e não ser bombardeado por informações a respeito de pessoas que você nunca viu e nunca verá é uma experiência impensada. O que fazem as pessoas que nunca conheceram a ausência de informações irrelevantes? Sentem o cheiro do ar pela primeira vez? Será que elas já pensaram que toda informação que não vai alterar nenhum plano da vida delas é, na melhor das hipóteses, entretenimento?