«Estou vendo que você está na pior. Você está se sentindo sufocada. Tem uma goteira na sala. Todo dia você tem de matar uma barata na cozinha. E os ratos? E esses vizinhos que fazem barulho o dia inteiro? Por isso é que você vive tensa o dia todo. Antigamente você não era assim. Mal está dando para te reconhecer. Lembra de quando a gente estava na faculdade? O que não faltava era homem correndo atrás. As meninas te invejavam. Pois é. E aí você decidiu vir morar com o Fulano. Ele parecia ótimo. Mas passa o dia todo fora, ganha dinheiro e não põe nada na casa, parece que gosta mais dos vizinhos do que de você. E quando você reclama, ele ainda te chama de louca e diz que você está reclamando de barriga cheia! Esse cara não gosta de você de verdade. Não te valoriza. Eu sei, toda mulher acaba se envolvendo com um cara assim. Mas você pode sair dessa. Meu carro está parado aqui embaixo. A gente faz as suas malas agora, eu te ajudo. Daí a gente vai embora junto. Você vai se recuperar. Vai voltar a ser como era antes.»
O parágrafo anterior é um resumo adaptado para fins didáticos do vídeo com que Éric Zemmour (agora com legendas em inglês) lançou sua candidatura à presidência da França.
(Em 36 horas, o YouTube decidiu que você só poderia ver o vídeo se estiver logado e tiver mais de 18 anos.)
(E se você quiser apenas ler o texto (em francês), pode ir ao site do candidato.)
O vídeo é uma pequena obra-prima do marketing digital, composto de cinco partes:
As «dores da persona».
«Tudo o que você podia ser»: a lembrança do que você já foi — e portanto daquilo que você pode ser. O «declínio francês» já é a obsessão nacional francesa desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial. Zemmour enfatiza em Le Suicide français um declínio que começaria pouco antes da morte do general de Gaulle.
A designação do inimigo, do culpado pelos males: a zelite. (Na Argentina, Milei ganhou essa ao inventar o termo la casta.)
A apresentação do guia que vai ajudar o eleitor — o próprio Zemmour. Que, na verdade, é muito mais do que um guia.
O CTA, call to action: vote em mim para presidente, junte-se a mim na restauração da França.
Termino com uma pergunta pessoal: o engajamento digital é fogo de palha ou vira comprometimento?
O vídeo é embalado pelo heroico segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven — o mesmo que foi utilizado para embalar o discurso do rei no filme The King’s Speech (informação que devo ao CNEWS, onde Zemmour trabalhou) — naquele clima que você já conhece: Frodo vai queimar o anel (no pun intended) e Zemmour vai salvar a França.
Uma ressalva: dizer que o vídeo é uma obra-prima do marketing digital não é menosprezá-lo nem desqualificá-lo. Um vídeo de propaganda também tem uma certa estrutura. Ele é feito com arte, isto é, com deliberação.
Agora, se você entender a estrutura da propaganda e da persuasão, será que vai ficar um pouco mais imunizado contra ela?
1 As «dores da persona» de Zemmour
Ao tentar entender como funcionava o marketing digital, aprendi que a primeira coisa que o marqueteiro deve fazer é identificar as «dores da persona».
«Persona», no caso, é o público-alvo; é uma pessoa idealizada que representa os clientes. Suas dores representam os problemas que ela gostaria que fossem resolvidos. Por isso digo a persona «de» Zemmour. A «persona» de alguém, no marketing, é o público ideal dessa pessoa, e não, como a palavra pode sugerir, a imagem que ela projeta.
Essa noção é importante porque muita gente, me parece, costuma achar que primeiro um produto é inventado e depois ele é vendido. Porém, o amador aposta que o produto encontrará um público. O profissional, por outro lado, estuda o público e já produz com esse público em mente.
Lembro de um vídeo em que Ana Paula Perci, co-produtora de alguns nomes grandes do Instagram brasileiro, falava que anotava o que as pessoas diziam precisar nas mensagens que lhe mandavam, e, na hora de fazer uma carta de vendas, reproduzia literalmente essas demandas.
Imagine agora que uma parcela significativa do povo francês há anos diz que tem uma goteira na sala, que todo dia tem de matar uma barata na cozinha, que os vizinhos fazem barulho — mas que ninguém reconhece essas «dores da persona» — isso para nem falar de saná-las.
Aliás, se você tirar o adjetivo «francês» do parágrafo anterior, perceberá que a ascensão das direitas pelo mundo aconteceu simplesmente porque alguém decidiu ouvir as dores dessa persona ignorada.
Na primeira parte de seu vídeo, Éric Zemmour usou o método Ana Paula Perci: ele literalmente repetiu de volta para as pessoas uma longa lista de dores:
Vocês não reconhecem sua cidade; na TV, estão falando uma língua estranha e, em suma, estrangeira. Vocês veem comerciais, séries, filmes, jogos de futebol, músicas, os livros didáticos dos seus filhos; vocês usam o metrô, o trem, o aeroporto; vocês esperam o filho ou filha na saída da escola; vocês levam a mãe na emergência do hospital; vocês fazem fila no correio, na agência pública de empregos, esperam na delegacia ou no tribunal, e não têm mais a impressão de estar no país que conheciam.
E então? A esta altura, ele já pegou na sua mão? Você já está disposto a ouvir qualquer coisa que ele diga?
Zemmour sintetiza todas essas dores num sentimento de dépossession, que posso traduzir como «despojo». O francês tinha algo que lhe foi tirado. Algo de que foi despojado: seu próprio país.
Vi o vídeo imediatamente depois de ter ouvido o Répliques do sábado anterior (também disponível no Spotify e no Apple Podcasts), em que Alain Finkielkraut citava aos 18m45s uma frase famosa de Edgar Quinet (1803-1875): «O verdadeiro exílio não é estar fora do seu país, é viver nele não encontrar mais nada que faça você amá-lo» («Le véritable exil n'est pas d'être arraché de son pays, c'est d'y vivre et de n'y plus rien trouver de ce qui le faisait aimer»).
Nem Finkielkraut nem seus convidados declararam apoio a Zemmour. O programa tratava da presidência de Macron, e eles disseram que um novo mandato seu lhes parecia o menor dos males. Porém, todos concordaram que havia um benefício inequívoco na presença de Zemmour no cenário cultural: muitos assuntos que ninguém ousava discutir agora estavam sendo discutidos.
A impressão que tive foi que alguém da equipe do Zémmour ouviu o programa e disse: «Voilà, esse é o fio que procurávamos para lançar a campanha. Vamos simplesmente enumerar as dores da persona, e falar de como é ruim sentir-se exilado dentro do próprio país.»
Devo até dizer (o que acho que já disse em outra newsletter) que Zemmour conta que, tendo crescido no 18éme Arrondissement de Paris, ou simplesmente «no dezoito», um dia ouviu de um imigrante ao passar pela área: «Se manda, Zemmour, teu lugar não é aqui» («Casse-toi, Zemmour, t’es pas chez toi). Se um imigrante um dia me dissesse isso quando eu andasse por Copacabana…
2 «Tudo o que você podia ser»
Outro consenso do marketing moderno é que o cliente deseja, em última instância, uma transformação. (Esse é o ponto em que o marketing precisa ser mais discutido, mas este não é o momento.) Até por isso tudo hoje é uma «jornada», cujo fim é a transformação do cliente. Donald Miller, em Building a Storybrand, discorre longamente sobre os «problemas interiores» do cliente. Sobre a busca de sentido.
Não basta reconhecer que o cliente está se sentindo mal, nem basta, num caso como o de Zemmour, mostrar-lhe o que seria sentir-se bem. «Você está na pior, mas você pode ficar assim, na boa.» Ele não está vendendo um pacote de férias. Está vendendo o futuro do país.
No caso da França, essa transformação futura é uma transformação que a reconecta com o passado. O «declínio francês» é um tema nacional desde pelo menos o fim da Segunda Guerra. Em Le Suicide français, Zemmour marca o começo desse declínio no fim do mandato do general de Gaulle.