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Quando eu era criança, circulava uma piada de português em que o «português» era evidentemente o homem universal, o Everyman da nossa época.
Num naufrágio, um inglês (ou sei lá), um francês (ou sei lá), e um português vão parar numa ilha dominada por selvagens. Antes de matar os naufragados para fazer canoas com suas peles, os selvagens decidem conceder um último desejo a cada um. Daí o inglês pede tal coisa, o francês pede não sei quê, e, chegando à essência da piada, nosso homem universal lusitano pede... um garfo.
Mas para que um garfo?
O tuga, pois, começa a furar a própria pele: gritando (de um jeito meio carioca): «Vais fazer canoa o cacete! Vais fazer canoa o cacete!»
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Talvez eu não devesse começar a filosofar assim de supetão, mas sempre penso nessa piada quando me deparo com toda tentativa de, como dizem hoje, evitar estereótipos de gênero. O português universal é a extremidade de um processo que começa bem humilde.
Nosso português não queria ser reduzido a um objeto (literalmente) para ser usado (literalmente) segundo o bel prazer (embora o prazer seja discutível) dos selvagens da piada.
O exemplo mais simples desse português universal está nas mulheres que fazem muito — não sem razão, essa é a parte interessante — para não ser reduzidas a objetos.
Pensemos na moça que vai se exercitar na academia com aquele moletom amarrado na cintura para desconvidar olhares alheios. Ela decerto não chegou ao nível de garfar a própria pele. Ela admitiu a existência de um olhar indesejável e lidou com ele dessa maneira.
Outras admitirão que esse olhar existe «e dane-se, vou fazer o que quiser, não me visto para os outros» — e o que é um moletom na cintura se não obviamente «vestir-se para os outros»?
Existe ainda a estratégia dos videoclipes pop, em que cantoras com microrroupas sacodem suas partes na cara do espectador ao mesmo tempo em que dizem que não são objetos, mas sujeitos; que elas é que vão fazer e acontecer, que você vai ser usado, descartado, e vai se apaixonar. Na imagem, elas se oferecem agressivamente à cobiça do espectador, exibindo tudo o que ele quer ver; no discurso, cospem na cara dele.
As cantoras estão exibindo a pele e cantando: «Vais fazer canoa, o cacete!»
(Essas são as mulheres «empoderadas».)
Num ponto mais extremo, outras mulheres lerão mil teorias a respeito do male gaze, da objetificação feminina, e vão, dentro e fora da academia, construir uma aparência cuidadosamente calculada para subverter todas as expectativas. Esse máximo de servidão, em que você prevê o máximo de olhares hostis (a cobiça indesejada é uma hostilidade) que serão dirigidos contra você, essa tensão contra a cobiça alheia que é internalizada como um hábito, que pode chegar até mesmo a ser uma carreira acadêmica — isso é que parece ser «individualidade» e «independência».
«Vais fazer canoa, o cacete!»
3
Até certo ponto desse processo, ainda estamos no universo mental de O vermelho e o negro.
Na segunda parte do romance, Julien Sorel está aos pés de Mathilde de la Môle, que, após ter-se declarado para ele, fica fria e distante. O modo de reconquistar Mathilde é afetar frieza e fingir estar interessado em outra. Tudo é determinado por Mathilde; tudo consiste em Julien fingir que não é determinado por Mathilde. Julien não vai amarrar um moletom na cintura para mostrar para todo mundo quem é que escolhe suas roupas. Ele vai agir como se Mathilde fosse irrelevante.
…lembre-se do grande princípio do século: mostre-se o contrário do que esperam do senhor. […] Não vou negar que seu papel é difícil; estará representando. Se notarem que é teatro, estará perdido.
— O vermelho e o negro, Parte 2, Cap. XXIV, «Estrasburgo», tradução de Raquel Prado
A esta altura, o leitor já sabe qual é o propósito do teatro: que Mathilde seja feita de canoa, não Julien.
Qual é a particularidade aqui? Julien sabe que que não passa de uma moça com o moletom amarrado na cintura. São os outros que não podem perceber. Julien não mente para si; mente para os outros. Ele sabe que tudo o que faz é determinado pelos outros. Tanto que, após ser condenado à morte, enquanto aguarda a execução, diz: «O que me importam os outros? Minhas relações com os outros vão ser cortadas bruscamente» (Segunda parte, Cap. XL; itálico no original).
4
Entramos numa nova fase do processo justamente quando passamos a mentir para nós mesmos. O moletom não foi amarrado na cintura para evitar os olhares: foi «uma decisão espontânea, tomada por puro gosto, é parte da minha identidade».
Ou então a moça pode nem ir à academia. Por quê? Porque «não gosta de ir à academia».
Pode evitar todos os sinais estereotípicos de feminilidade, como pintar as unhas, usar joias e bijuterias, cabelo comprido, ter um jeito meigo. Mas isso não é para evitar o olhar hostil e a objetificação. Ela dirá: «sou assim mesmo, é isso que eu sou, essa é a minha identidade». Ao mesmo tempo, misteriosamente, essa pessoa muitas vezes terá feito um doutorado na hostilidade alheia, «que não a aceita como ela é».
Esse é um exemplo de um processo. Outro exemplo, de outro processo similar: Julien começa fingindo para Mathilde que é o maioral e não a deseja. Em nome de uma encenação autêntica, ele se torna realmente frio. Afinal, o mesmo amigo (Korasoff) que lhe tinha ensinado como seduzir Mathilde, antes tinha ensinado:
«O aspecto triste nunca é de bom-tom; é preciso afetar uma expressão entediada. Se está triste, alguma coisa lhe falta, alguma coisa que não deu certo.
«É mostrar-se inferior. Se está entediado, pelo contrário, aquele que tentou sem sucesso agradar-lhe é inferior. Compreenda, meu caro, como é grave o equívoco.»
— O vermelho e o negro, Parte 2, Cap. XXIV, «Estrasburgo», tradução de Raquel Prado
Ou seja: de tanto mostrar-se entediado, ele se torna realmente entediado. Faz tudo para demonstrar tédio para os outros e se torna realmente indiferente. Quando uma Mathilde cai a seus pés e se oferece para ele, ele descobre sua impotência sexual. A mulher do videoclipe que faz questão de dizer que só usa os homens — isto é, que não os deseja de verdade, pois desejar é mostrar-se vulnerável — se torna frígida.
No fim das contas, todos estão dizendo: «Vais fazer canoa, o cacete!»
5 Uma nota à parte
Escrevi tudo isto a partir da preparação das aulas seguintes do curso Desejo & Orgulho, cujas inscrições devo reabrir na semana que vem. O segundo semestre deste ano de 2021 foi bastante difícil, mas tenho muito a agradecer aos alunos e leitores. Por isso, terminarei o curso oferecendo muito mais do que imaginava.
O curso parte de O vermelho e o negro, de Stendhal, passa pelo brevíssimo Diário de um homem supérfluo, de Turguêniev, e chega a Memórias do subsolo, de Dostoiévski, justamente porque em Stendhal temos um estudo cristalino da motivação. A partir do Diário, os personagens começam a agir de maneira aparentemente contrária a seus interesses; o que eles narram contraria o que eles declaram a respeito do que narram — exatamente como uma mulher que amarra o moletom na cintura e diz que, na verdade, não existe nada melhor do que um bom moletom amarrado na cintura.