036 Um padre (gay) contra o Sr. de Rênal
Se o estudo não serve para você ficar mais sensível à mensagem do que ao mensageiro, para que serve, então?
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Se eu realmente der um curso a respeito de marketing e teoria mimética, provavelmente começarei explicando, no melhor estilo do marketing atual, por que você nunca será um influenciador e por que (por conseguinte) ninguém vai comprar nada só porque é você que está vendendo.
Todos esses livros de marketing que eu leio falam da jornada do herói, de storytelling, de você ser um guia para o seu cliente, que a história é a história dele, e não dizem o óbvio: quem conta a história é tão importante quanto a própria história. O mensageiro vem antes da mensagem.
Por exemplo: dia 7 de janeiro estará disponível o novo livro de Michel Houellebecq. É altamente provável que eu compre esse novo livro no dia 7 de janeiro. Por quê? Michel Houellebecq.
Igualmente, você vai ver o show do Fulano porque é o Fulano, vê o filme tal porque é do diretor tal, ou com o ator tal, e, por que não?, vai a uma determinada missa por causa do padre tal.
Você pode fazer um exercício interessante. Qual a relação entre mensagem e mensageiro? A primeira relação é de credibilidade, num sentido um pouco oficial. Eu já traduzi algumas boas dezenas de livros e talvez possa falar algo sobre tradução. Um surfista pode falar de surf. Cada profissional, enfim, pode falar do seu ofício.
Qualquer pessoa vagamente mais inteligente vai comparar também o que a pessoa propõe e o exemplo que ela dá. Quem você prefere consultar se quiser emagrecer? Um nutricionista gordo? Prefere aprender português com alguém que não fala bonito?
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Ok. Estabeleci algumas bases. Agora posso chegar ao problema que realmente me interessa neste email.
Se você tem uma mensagem que é muito diferente, uma mensagem que destoa, uma mensagem que abala, quem pode transmitir essa mensagem?
«Trabalhe, seja forte, sirva, e não encha o saco» — não consigo enxergar nenhum problema com essa mensagem, mas conheço muitas pessoas que não vão com a cara do mensageiro, o Dr. Ítalo Marsili. Não ir com a cara de alguém é algo um pouco misterioso — não cabe especular, é um direito de todos. Mas é verdade que essa mensagem e o dr. Ítalo são um sucesso?
O que seria essa mensagem se não fosse dita por um psiquiatra fortão e bem-sucedido? O quanto da persuasividade dela vem do mensageiro? O quanto vem de um ajuste de comunicação?
Outro caso de mensageiro: Olavo de Carvalho. Quantas coisas ele poderia dizer sem que fossem questionadas, por que ele próprio é a garantia? Vejam, aliás, que isso é comprovado até pelo fato de haver pessoas que rejeitariam algo porque foi o Olavo quem as disse.
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Agora, um dos objetivos da educação não seria justamente ser mais sensível à mensagem do que ao mensageiro? Uma sensibilidade exacerbada para o mensageiro não seria um claro sinal do mais vulgar estetismo? Especialmente para um cristão, cujo Cristo era um carpinteiro de Nazaré, hardly one of the cool kids, morto ao lado de dois ladrões e não particularmente seletivo em suas amizades, as cobranças de respeitabilidade não deveriam ser acompanhadas de alguma… ironia?
Por notar essa sensibilidade exacerbada quanto ao mensageiro, sempre quis fazer um teste. Aqui abaixo vai um trechinho do começo de um famoso ensaio:
São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável : a faculdade de intercambiar experiências.
Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.
Quem é o autor? Walter Benjamin, marxista heterodoxo, precursor da Escola de Frankfurt. O ensaio se chama «O narrador».
Deixei o link do Benjamin de propósito. Acho difícil não querer continuar a leitura.
4 Não há na Bíblia condenações a pessoas LGBT
Neste momento do texto, lembro de René Girard dizendo que o burguês só acredita em platitudes negativas. O burguês, o Valenod de O vermelho e o negro, o Sr. de Rênal, aquele nobre de espírito burguês, dividem a mesma atitude: ninguém vai me enganar! Só aceitariam ler o «comunista» Benjamin com três pulgas (devidamente catadas no cachorro) atrás de cada orelha, criticando-o a cada frase, e fazendo questão de demonstrar uma total falta de caridade diante do menor «deslize» aparente. Ele sempre será um «lobo em pele de cordeiro» — nunca será um homem com quem você possa conversar.
Na semana passada, uma semana pessoalmente complicada para mim, recomendei um vídeo (em inglês, sem legendas) do padre James Alison explicando que os trechos da Bíblia que são usados como condenação de pessoas LGBT na verdade estão sendo mal-interpretados. James faz análises bastante austeras e tira seus critérios de interpretação do documento «A interpretação da Bíblia na Igreja», produzido pela Pontifícia Comissão Bíblica (com o dedo de Joseph Ratzinger):
Se bem que toda leitura da Bíblia seja forçosamente seletiva, as leituras tendenciosas devem ser descartadas, isto é, aquelas que ao invés de serem dóceis ao texto só os utilizam para fins limitados […].
É preciso eliminar também, evidentemente, toda atualização orientada no sentido contrário à justiça e à caridade evangélicas, as mesmas que, por exemplo, queriam basear a segregação racial, o antissemitismo ou o sexismo, masculino ou feminino, sobre textos bíblicos.
(No canal do James no Iultúbio, você pode ver a mesma palestra em espanhol — sim, ele fala espanhol, e também francês e português —, dividida em algumas partes. A primeira é esta. Cuidado com os falsos cognatos do espanhol. Num dos vídeos ele diz seso, que pode soar como «sexo», mas é «siso, juízo».)
A mensagem abala: então a Bíblia não fala nada contra os gays? Mesmo? Isso é aquele vídeo do U2 em que aparecia numa tela a frase Everything you know is wrong?
Mas… E se essa mensagem tivesse sido dita por Olavo de Carvalho?
Se essa mensagem tivesse vindo de alguém que você admira inequivocamente?
A mensagem veio de um padre abertamente gay. (Vejam que o chamado à castidade é universal, o que está em questão não é a vida do padre.) Deveria James Alison recobrir sua mensagem com ares de respeitabilidade para que ela fosse ouvida?
Um problema, aí, é que a respeitabilidade muda de acordo com o freguês. Só quem se safa desse problema é que está mais atento à mensagem do que ao mensageiro. Um anônimo do Instagram veio me dizer que um gay, dando palestra numa universidade americana… Eu sei, eu sei, Sr. de Rênal: ninguém te engana.
Se você pesquisar um pouco James Alison, verá o seguinte: ele é gay e não quer fingir que não é. Ele questiona a política da Igreja Católica de que os sacerdotes devem ser discretos quanto à sua homossexualidade. Ele não está dizendo que os padres devem ser dispensados — como os demais cristãos, aliás — da castidade. Ele apenas não quer fingir que é outra pessoa. Se eu mesmo não gostaria de fingir que gosto de ver jornais na TV, por que alguém deveria fingir que gosta é de mulé e cumpre um terrível sacrifício?
Outra pessoa no Instagram veio também me falar da respeitabilidade. Disse preferir os Grandes Comentadores da Tradição da Igreja, como aquela pessoa que diz que você deve ler os clássicos e desprezar os contemporâneos — como se um dia um Padre da Igreja não tivesse sido apenas um maluco no deserto, como se Camões não tivesse morrido na pobreza.
Eu sei que um padre gay que não finge que não é gay (estranhamente, padres caricaturalmente gays, gays como se estivessem sendo interpretados por Chico Anísio, são respeitáveis só por não mencionar o que salta aos olhos) já é uma informação desafiadora; ele trazer uma mensagem que contraria o senso comum também abala; mas…
…toda essa formação do imaginário, educação pelos clássicos, o voo da águia, as artes liberais, os núcleos de formação, tudo isso serve exatamente para quê?
Só para você comprar sempre as mesmas ideias dos mesmos mensageiros?