037 A paz do mundo e a paz de Deus
Uma reflexão para o Natal de 2021
Durante os dias de Natal, estou dando um desconto de dois meses na assinatura anual da newsletter. Basta clicar em Subscribe Now (infelizmente, o menu é em inglês mesmo). Em algum momento do dia 26, devo tirar o desconto.
Um dos planos para 2022 é aumentar a frequência do conteúdo pago e reduzir a frequência do conteúdo gratuito. Em vez de três textos gratuitos e um pago, devo passar para textos gratuitos e pagos alternados.
Em 2022, também é provável que a literatura brasileira venha a ser um tema importante, enfatizando a vida e a obra de Bruno Tolentino, o que pode incluir novos resultados de minhas pesquisas na Europa (caso eu possa viajar, claro).
O aumento da polarização política provavelmente será acompanhado de comentários tirados de Nelson Rodrigues, de Ibsen, e, sobretudo, da tragédia grega — e isso tudo deve virar um curso.
E vamos à newsletter de Natal! (Já que a anterior veio um dia depois do previsto, esta vem um dia antes.)
1
O Evangelho de João foi posto no último lugar dentre os quatro, mas é nele que Jesus faz a distinção mais explícita entre dois tipos de paz:
Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize! (João 14, 27)
Essa distinção, porém, é trabalhada nos demais Evangelhos.
No Evangelho de São Lucas (2, 14), que na Bíblia vem logo antes do de João, de fato os anjos cantam o nascimento de Jesus pedindo «na terra paz aos homens» — paz essa que decerto não é a paz do «mundo».
Já adulto, no Sermão da Montanha, Jesus ainda enfatiza: «Bem-aventurados os que promovem a paz» (Mateus 5, 9). Algumas traduções dizem «Bem-aventurados os pacíficos», mas o grego original é bem claro: os eirenopoioi são «os que fazem a paz». Eirene, paz (o nome «Irene» não fica mais bonito agora?). Poioi, os que fazem. É a mesma raiz de «poesia». No primeiro dia da Faculdade de Letras, o aluno aprende que a poiesis grega que dá origem à palavra «poesia» significa apenas «fazer».
E, se você não se lembrar da paz do «mundo», talvez estranhe também que Jesus explique: «Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada» (Mateus 10, 34). E sim, dessa vez a mesma eirene aparece. Não é uma questão de tradução.
A palavra eirene, por outro lado, não aparece numa instância em que a paz é claramente «feita», no sentido de «fazer as pazes», no Evangelho. Esse é um dos melhores exemplos da paz do «mundo». A tradução da Ave-Maria, a mais difundida entre os católicos, chega até a usar a expressão «fazer as pazes». Estou falando do episódio em que, pouco antes da crucifixão, Pilatos envia Jesus a Herodes:
Ali estavam os príncipes dos sacerdotes e os escribas, acusando-o com violência. Herodes, com a sua guarda, tratou-o com desprezo, escarneceu dele, mandou revesti-lo de uma túnica branca e reenviou-o a Pilatos. Naquele mesmo dia, Pilatos e Herodes fizeram as pazes, pois antes eram inimigos um do outro. (Lucas 23, 10-12, grifo meu)
O texto grego na verdade é um pouco mais forte, e diz que Pilatos e Herodes «tornaram-se amigos» (egenonto filoi).
Essas são as duas pazes do Evangelho: de um lado, a paz que Deus deseja aos homens, a paz cuja promoção é uma felicidade, uma bem-aventurança; e, de outro, a paz que Jesus não veio trazer, a paz que surge quando dois inimigos se juntam contra um terceiro.
2
Um dos principais efeitos do Cristianismo é a desmistificação da paz falsa do «mundo». A multidão estava contra Jesus, e Pilatos e Herodes ficaram amigos. Essa é a paz que surge quando eu me junto com outra pessoa para falar mal de uma terceira. Ao mostrar que é assim que surge a paz falsa, falsa porque baseada na violência, o Evangelho solapa suas bases. O Evangelho é escrito contra essa paz mundana, é escrito de modo a nos levar a rejeitar a paz de Herodes e Pilatos.
Eles eram inimigos. Sem essa paz falsa, que Jesus veio desmistificar, é natural que venha a espada. É uma simples decorrência. Depois de Cristo, os futuros Pilatos e Herodes cada vez mais estarão fadados a permanecer inimigos até que estejam dispostos a «promover a paz» no sentido do Sermão da Montanha e do desejo dos anjos. Sempre que a paz for feita nas costas de alguém, as pessoas perceberão isso e denunciarão essa falsa paz.
Os apóstolos esperavam o Apocalipse — a Revelação dessa paz falsa e a vitória da paz verdadeira — para breve, talvez por acreditar que a mensagem de Jesus era tão forte que tudo isso ficaria óbvio muito rapidamente, e toda a paz falsa do mundo ruiria. Por falta de opção, se não consigo fazer a paz falsa me juntando com outro contra um terceiro, só me resta buscar a paz verdadeira.
Por outro lado, o próprio Jesus reclamava da dureza de coração das pessoas, e vemos que Ele tinha razão: dois mil anos depois, continuamos desejando ardentemente a paz falsa do «mundo».
3
Toda a vida política recente do Brasil — como aliás toda vida política e toda vida pública de todo tempo e lugar — vive de ser sequestrada por essa paz falsa.
No marketing, aliás, essa estratégia é chamada de inimigo comum. Outro dia mesmo eu ouvia o meu Répliques de sempre, quando um dos entrevistados de Finkielkraut contou de um amigo, ex-policial nos Estados Unidos, que, num desses tumultos recentes, desses ataques aos policiais, falava da extrema dificuldade de resistir «ao contágio das pessoas que têm certeza de que vão fazer o bem».
(O bem falso, é claro.)
A veracidade das acusações é irrelevante. Os tumultos americanos podem ter sua origem numa acusação de racismo. Porém, no episódio da mulher adúltera que ia ser apedrejada (João, 8), Jesus não disse que na verdade ela era não era adúltera, mas que, se fosse adúltera, então tudo bem apedrejá-la. Ele não desmentiu a acusação. A paz continuaria sendo falsa porque seria baseada nessa violência contra um terceiro. E teria de ser renovada — esse é o eterno retorno pagão — com o sangue de cada nova adúltera.
Ou seja: Jesus, na prática, vai até um pouco além do que diz em Mateus 12, 7: «Se compreendêsseis o sentido destas palavras: Quero a misericórdia e não o sacrifício [Oseias 6, 6]… não condenaríeis os inocentes.»
É um convite muito radical. Não condenar os inocentes, ok; mas… nem mesmo beneficiar-se de uma paz falsa em torno dos verdadeiramente culpados?
4
A radicalidade não acaba aí. Talvez o leitor tenha pensado que falei dos «verdadeiramente culpados» para dar a entender que, na vida política brasileira, há culpados verdadeiros e pazes portanto verdadeiras formadas em torno deles. Porém, se você vai precisar de uma nova adúltera para apedrejar daqui a pouco, que paz é essa?
Sem contar que o Espírito Santo é o Paráclito, literalmente o advogado de defesa. O católico reza para a Virgem Maria chamando-a de «advogada nossa». Cristo agiu como advogado de defesa da mulher adúltera. Poupou-a da condenação pública, mas advertiu-a em privado para não pecar mais.
Na missa da Sexta-Feira Santa, o povo que a assiste é convidado a ler a parte da Paixão em que a multidão pedia para crucificar Jesus. Nosso lugar, na leitura da história da mulher adúltera, não é o de mulher adúltera: é o dos apedrejadores.
Assim, na vida pública e política brasileira dos últimos anos, cada qual tem sua adúltera para pegar para Cristo: PT, Dilma, Lula, Bolsonaro, China, gente pró-vacina e gente anti-vacina… E, aparentemente, ninguém consegue mais formar uma paz falsa para celebrar o Natal, porque dentro das famílias e dos círculos de amizades, a adúltera de um é o Cristo de outro, ou, no antigo ditado americano, one man’s terrorist is another man’s freedom fighter («o terrorista de um é o guerreiro da liberdade de outro»).
Gostaríamos de ser como Pilatos e Herodes. Gostaríamos de nos juntar para detonar os petistas / bolsonaristas / vacinistas / antivacinistas / sei lá e celebrarmos um Natal feliz. Gostaríamos de falar mal da mesma pessoa. Porém, todos sabemos que é falsa a paz que é formada em torno dos nossos favoritos. O bolsonarista enxerga que «estão todos contra Bolsonaro». O petista enxerga que «estão todos contra o PT». E assim por diante.
(E esse é também um sentido dos versos «Poema nenhum, nunca mais / será um acontecimento», de Alberto da Cunha Melo: nunca mais, na vida pública, poderemos dizer palavras poderosas que unem as pessoas contra um terceiro, porque esse terceiro sempre terá defensores para desmistificar essa união.)
Porém, não foi essa a paz que os anjos desejaram na noite em que Cristo nasceu, mas a paz que surge quando somos capazes de «perdoar até setenta vezes sete» (Mateus 18, 22) e, talvez principalmente, vencendo o orgulho que sempre nos põe no lugar da parte ofendida, pedir perdão, «setenta vezes sete», ou seja, indefinidas vezes, por cada palavra ou gesto de desprezo, por cada fofoca, por cada comentário que levou à separação de amigos que, originalmente, não estavam unidos contra o terceiro.
É Natal ou nada. É Natal ou é a paz falsa. E em 2022, com o resultado de mais uma eleição para dividir ainda mais as pessoas, a opção de perdoar, de «amar os inimigos», vai se apresentar de maneira ainda mais radical. E em 2023… Estamos num caminho sem volta, em que a paz falsa vai sempre parecer mais falsa e menos vai poder tomar o lugar da paz de Cristo.
Feliz Natal — embora seja difícil perdoar e aceitar o perdão, o que se tem a ganhar é o Reino dos Céus.
Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve. (Mateus 11, 28-30)