040 Literatura para marqueteiros
Vamos lá, meu futuro copywriter, a França do século XIX é para você!
Recentemente percebi que sou seguido por muitos aspirantes a marqueteiros no Instagram. Como meu tema principal é a literatura, decidi escrever esta newsletter para eles.
1 A literatura como entretenimento
A ideia de que a literatura precisa justificar-se sempre me dá um certo asco. Penso naquelas pesquisas que dizem que os homens casados vivem mais tempo: ninguém nunca se casou para viver alguns anos a mais. That’s not the point. Leio literatura porque quero. Os benefícios vieram sem que eu os pedisse.
O primeiro motivo para ler literatura, aliás, é o mesmo de sempre: o puro e simples entretenimento. É muito recente a ideia de que a literatura é uma espécie de tonificante do imaginário, de musculação cerebral, de que ler livros é o equivalente de correr na esteira.
Você pega o exemplo de O vermelho e o negro. Seu autor, Stendhal, foi há alguns anos eleito por um seleto grupo de críticos franceses o «autor nacional» do país. Talvez por isso o leitor brasileiro de 2022 se surpreenda, ao encontrar na tradução do romance publicada pela editora Sétimo Selo, a carta que Stendhal escreveu a um editor italiano a fim de convencê-lo a traduzir o romance. Stendhal não se apresentava como um grande artista, formador do imaginário e tonificador das almas, mas simplesmente como alguém que vendia bem. Mencionava que seu livro correspondia ao gosto das leitoras da província. Um autêntico marqueteiro.
Os romances, então, eram o equivalente da Netflix? Sim, na medida em que eram vistos antes de tudo como entretenimento. Stendhal não pretendia educar ninguém. Nem Jane Austen. Nem, aliás, Machado de Assis.
Ainda admito que, como o marketing sempre exige que justifiquemos tudo (aguardo o post no Instagram que me dirá «por que devo tomar banho todos os dias» ou «por que devo usar papel higiênico»), a ideia de fazer algo gratuitamente ganha em atrativos. Sim, temos aí algo do subsolo do Dostoiévski... Mas esse é outro tema.
2 Por que você deve ler algo que te agrade
Como estou escrevendo para marqueteiros, vou usar a fórmula.
Existe um ponto muito importante, que é o motivo de eu sempre dar a mesma resposta quando me perguntam o que ler. A resposta é: leia algo que te agrade. Leia algo de que você goste.
Porque você pode obter os efeitos de uma dieta odiando essa dieta, porque uma mulher pode até engravidar sem sentir prazer, mas a literatura só trará algum benefício a quem se entregar a ela. Se você não gostar do que lê, a história não vai ficar na sua cabeça, você não vai se lembrar dela quando menos espera, não vai fazer as conexões com outras histórias e com a famosa vida real. Vai ser como aquele estudo para a prova da escola: sempre achei impressionante que, um segundo após responder as questões, todo o assunto desaparecesse da minha mente. Um milagre do desinteresse.
Assim, se você realmente não gosta de ler literatura, tudo bem. Conheci um marqueteiro milionário (não, não foi o Ícaro, nunca estive com ele) que me disse, todo orgulhoso, que só lia biografias e livros de negócios.
Porém, se você for se meter a «ler literatura», encontre algo que te agrade.
Mas, se você quiser os tais famosos benefícios, viver alguns anos a mais, fazer amigos e influenciar pessoas, dominar a sutil arte de compreender as motivações das pessoas, eu também recomendo que você se atenha a um certo tipo de literatura.
Sim, claro, se você gostar, leia o que você gostar, pode me esquecer. Eu leio muito mais literatura do que essa que vou recomendar aqui, embora essa seja a que (no momento) mais me interessa.
3 O que um marqueteiro pode ler agora
A resposta terá algo de ovo de Colombo: depois que eu disser, vai ser muito óbvia.
Os marqueteiros tirariam benefícios mais imediatos lendo grandes romances realistas que explicam as intenções dos personagens e mostram os resultados de suas ações.
(Estou falando de romances realistas escritos para adultos. Não estou falando de romances juvenis de fantasia em que os personagens apenas agem segundo tipos: o cavaleiro nobre, a princesa bondosa. A motivação dessas pessoas está dada desde sempre, e a única dúvida diz respeito à maneira como elas atingirão seus objetivos. Se o personagem for nobre, será uma maneira nobre. O xadrez deve conter mais possibilidades... morais.)
Isso só não é totalmente óbvio porque, enfim, se você não lê romances, não sabe que uma parte deles só mostra as ações dos personagens. Em Demônios, Dostoiévski não discute as motivações. Essencialmente, você tem o que cada personagem diz de si mesmo, o que nem sempre é completo, ou mesmo acertado. Se você quiser entender muitas das motivações de Demônios, precisa ir a um romance anterior: Memórias do subsolo, que foi o primeiro grande romance do russo genial.
Ou ainda: o narrador pode falar das suas motivações, mas ele pode ser meio confuso, e parte da diversão da leitura consistirá em você mesmo completar as lacunas do narrador. Esse é o caso de Dom Casmurro. Talvez seja a maior obra da língua portuguesa, mas é também uma obra... avançada, digamos.
Assim, a melhor literatura para quem gostaria de entender agora algo do comportamento humano é a grande literatura realista que trata da ambição e da sedução. E, de todos os autores que conheço, o melhor, para começar, deve ser o bom e velho Stendhal.
Um romance como O vermelho e o negro funciona da seguinte maneira: Fulano quer, Fulano faz, Fulano avalia as consequências. Fulano quer, Fulano estima os desejos concorrentes, a situação de cada pessoa, Fulano planeja, executa, avalia.
Com dez quilos a mais, eu explicava «O projeto de Stendhal» no curso Desejo & Orgulho (o link vai dar no vídeo no IGTV)
Stendhal é também um dos grandes inspiradores da teoria mimética, porque sempre leva em conta a imitação dos desejos. De um lado, o protagonista Julien Sorel quer ser como Napoleão. Ao mesmo tempo, o vil Sr. de Rênal é logo motivado a pagar mais pelos serviços de Julien porque acredita que seu rival, o Valenod, também deseja esses serviços. Ele imita um desejo que ele mesmo imagina que o rival tem. Assim, contrata Julien antes que o rival o contrate.
E está tudo explicado, visível. Os pontos que Stendhal deixa para o leitor conectar são poucos. Basta começar a ler e você já começa a reconhecer os personagens.
4 Uma recomendação contemporânea: o livro que ensina a ler
Se existe um romance que ensina a ler romances, é A amiga genial. São quatro livros, em que a narradora, Lenù, conta a vida inteira de sua amizade com Lila. No caminho, vemos a formação das duas da Itália da década de 1950 até hoje; vemos o que significa crescer num bairro pobre dominado pelas milícias, isto é, pela máfia, e o que significa querer sair de um ambiente bruto em todos os sentidos da palavra. A narrativa é ágil, feita para você não largar.
Agora, não é apenas claro que Lenù enxerga em Lila a verdadeira «amiga genial»: também é claro que nós, leitores, vemos que Lenù é também genial, e que a própria Lila a via dessa maneira.
E aí é que está: a «graça» de muitas obras de arte está em simplesmente juntar aquilo que o autor apenas sugeriu. Isso significa, muitas vezes, ser capaz de ler um trecho desde dois (ou três, quatro...) pontos de vista.
Em A amiga genial, a narradora Lenù é explícita quanto à maioria de suas motivações, mas também é claro quando ela está mentindo para si mesma. Os reencontros com Lila também fazem com que muitos acontecimentos pregressos sejam revistos. O livro vai ficando mais claro à medida que avança, e Lenù pode ir soltando a mão do leitor. Ela vai crescendo e amadurecendo, e o leitor cresce junto, lendo Lenù cada vez melhor.
(Estou dando esse exemplo porque a literatura de menor prestígio é de fato totalmente explicada. O melhor exemplo dessa explicação total de tudo está em Veronika decide morrer, de Paulo Coelho. No capítulo I, Veronika tenta o suicídio tomando narcóticos. No capítulo II, Veronika acorda e vê uma luz fluorescente. Tubos saem da boca e do nariz. Caso tenha restado alguma dúvida, o narrador mata-a como quem, após pisar numa barata, ainda firma a ponta do pé e rodopia: «Veronika -- numa fração de segundo -- entendeu o que havia acontecido. Tentara o suicídio, e alguém chegara a tempo para salva-la.»)
Assim se, por algum motivo, O vermelho e o negro parecer complicado — embora eu mesmo ache eletrizante desde a primeira página —, A amiga genial será uma introdução excelente.