042 Contra a preocupação com a «formação do imaginário»
Contra lições de vida, contra lemas, contra a mentalidade de ladroagem
Sempre tive uma implicância enorme com a mera ideia — isso, com a mera ideia — de que alguém se preocuparia com a «formação do imaginário».
Primeiro, como disse várias vezes, porque isso parecia envolver valorizar as artes por causa de algum efeito colateral seu. Em algum lugar já li que homens casados aparentemente vivem mais, o que seria um efeito colateral do casamento, mas claro que nunca me ocorreu subir ao altar para extrair da minha convivência conjugal um tempo extra de vida.
Segundo, para você «formar» um «imaginário», você precisaria ter um imaginário, o que certamente falta à vasta maioria das pessoas, dos brasileiros doutores e fellows de Columbia que pululam no Tuítro ao pobre que, no interior do Pantanal, só tem seu telefone Android e olhe lá. E digo isso porque, desde que eu era criança, uma coisa me impressionava: mesmo que os adultos me dissessem frases feitas como «cada cabeça, uma sentença», o fato de que as pessoas tinham ideias distintas era óbvio demais para sequer ser mencionado. Aquilo que ninguém comentava era que cada pessoa tinha uma motivação distinta.
Entra em cena a ficção, seja na forma de romance, de teatro, de cinema, de série de TV. O que ela mostra? Exatamente isto: cada pessoa tem sua motivação. Um sujeito quer se divertir naquela noite, a prostituta quer sustentar a família. Emma quer sair do mato, Charles Bovary quer se casar. A criança Lila (de A amiga genial) tem um talento fora do comum, seus pais querem que ela simplesmente saia da escola e comece a trabalhar agora mesmo — por tosquice, por ressentimento, por necessidade. Bentinho quer recriar na velhice a própria infância, mas a acusação que lançou contra Capitu impede essa recriação.
Se você olhar a direita brasileira que tanto se preocupa em «formar o imaginário», até que ponto ela se beneficiou da ficção? Aparentemente, ponto nenhum.
Ninguém olha outra pessoa e tenta primeiro entender a motivação dela. Melhor ainda: ninguém tenta sequer descrever essa motivação.
Se alguém é muito diferente de você, isso não te intriga? De maneira nenhuma? Não te ocorre dar um passo atrás e simplesmente observar sem julgar, tentando primeiro dar nome, ver se você entendeu mesmo?
Essa é a parte da famosa «vida intelectual» que me interessa. Descrever o que acontece. Observar as transformações. Sem a pressa de julgar, sem a pressa de encontrar uma classificação. Não quero dizer que não existam classificações, que elas sejam indesejáveis. Só que antes de chegar ao diagnóstico e ao rótulo existem inúmeros passos. Antes de chegar ao lema para a vida, existem mil observações a serem feitas.
A literatura «serve», por exemplo, para que eu imagine essas vidas que não são as minhas. Não sou um personagem de Michel Houellebecq que vive da seção de congelados do supermercado, esperando a morte chegar. Não sou um ciumento como Bentinho. Talvez eu tenha algo de Emma Bovary. E certamente não me interessa analisar cada um desses personagens como se eu fosse a promotoria do Juízo Final, distribuindo acusações (quem acusa é Satanás; nós, cristão, rezamos para Maria, «advogada nossa» e ao Espírito Santo, «paráclito», advogado de defesa), nem como se me bastasse saber «o que tirar» de cada livro que leio.
Se você não consegue oferecer sua atenção a uma obra de arte sem esperar nada em troca, não creio que vá sequer receber alguma coisa dessa obra de arte. Aqui está a questão inteira: vá sem esperar nada, e receberá muito; vá de pires na mão, e não ganhará nem uma migalhinha. Embora, é claro, outras pessoas possam até achar que você «aprendeu as lições» e surrupiou da obra aquilo que, por motivos insondáveis, o autor não quis te dar de graça.
Afinal, se você apenas deseja à primeira vista saber de que maneira uma pessoa pode ser útil para você, por que ela revelaria seu coração?