Pedro Sette-Câmara

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045 Jesus justifica a violência ao expulsar os vendilhões do Templo?

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045 Jesus justifica a violência ao expulsar os vendilhões do Templo?

Depois da invasão da igreja em Curitiba, vi o episódio usado para justificar a agressão. Mas...

Pedro Sette-Câmara
Feb 8, 2022
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045 Jesus justifica a violência ao expulsar os vendilhões do Templo?

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Nos Evangelhos, há um episódio que, em português, é conhecido como «Os vendilhões do templo» (ou «Jesus expulsa os vendilhões do Templo») e que, em inglês, é conhecido como «The Cleansing of the Temple», ou «A purificação do Templo» — sendo o templo em questão o Templo de Jerusalém.

Já vi o episódio citado por ateus que respeito como exemplo de que Jesus «também foi violento!», e esta semana, com a invasão da igreja em Curitiba, citado por católicos que também respeito como exemplo de que a agressão estaria justificada pelos Evangelhos.

Dois grupos, o mesmo episódio, quase diluindo suas diferenças.

«Jesus foi violento sim!»

«Era para ser violento mesmo!»

(É fácil imaginar uma daquelas discussões que estão quase virando briga, mas as pessoas estão concordando.)

O episódio dos vendilhões do templo é lido nas missas no terceiro domingo da Quaresma, na versão que aparece no segundo capítulo do Evangelho de João — aquela que tem o «chicote» e que nos dá a imagem de um Jesus revoltadaço cheio daquela santarronice (self-righteousness, para os falantes de porto-inglês) de filme americano, passando sermão em geral:

13 Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.14 Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas.15 Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas.16 Disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes.

(Estou usando a versão da Ave-Maria.)

James Alison to the rescue

Daí pensei: o James Alison já deve ter falado desse trecho. James é o mestre quando se trata de destrinchar esses trechos cabulosos que deixam a gente com pé atrás.

Por isso, o que segue é apenas um resumo da explicação de James Alison; de minha parte, posso dizer que fui conferir as citações bíblicas.

Vamos lá.

— Os «judeus» da «Páscoa dos judeus» não correspondem aos «judeus» de hoje, mas àquela parte do povo hebreu que estava empenhada na religião, mantendo o Templo de Jerusalém.

— Bois, ovelhas, e pombas são animais sacrificiais. Os bois correspondem aos sacrifícios mais antigos; as ovelhas, ao sacrifício de Moisés. As pombas ficavam para os pobres, que não tinham dinheiro para comprar os outros animais.

— Os trocadores de moedas estavam lá porque no Templo você só podia usar dinheiro do Templo, e não o dinheiro pagão, com efígies pagãs. Assim, esses trocadores de moedas estavam fazendo operações de câmbio.

Agora vamos para a parte mais quente.

Chicotadas?

Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas.

Na versão anterior deste texto, eu dizia que «O chicote de cordas era o instrumento com o qual o sacerdote espalhava o sangue de um animal para fazer a purificação do templo».

Puro delírio meu, que criei esta imagem ao tentar imaginar os rituais de purificação do Primeiro Templo (o Templo da época de Jesus era o Segundo Templo, visto como uma espécie de cópia barata do Primeiro).

Para piorar, eu ainda associava as chicotadas ao movimento realizado pelo padre para aspergir água nas missas cariocas do século XX.

Hora, portanto, de um esclarecimento.

O que há de chicote é o seguinte: sim, o sacerdote purificava o templo pingando nele o sangue de um animal; porém, na Mishná Yomá, 5.3, lemos:

...e ele nem tencionaria aspergir o sangue para cima, nem aspergi-lo para baixo, mas sim como alguém que chicoteia, com o sangue aspergido numa coluna única, uma gota após a outra.

A Mishná Yomá (corrijam-me os judeus, por favor) trata do dia do Yom Kippur, o dia do perdão. Se imaginar que o povo reunido no Templo conhecia essas instruções seria um abuso, é razoável supor que os sacerdotes do Templo as conhecessem — e, talvez, dentro do quadro dos outros sinais proféticos, vissem no chicote de cordas mais uma associação com a figura do Sumo Sacerdote que retornava para purificar o Templo.

A respeito do que Jesus efetivamente fez com o chicote, como eu mesmo já fiz muitas suposições, preferi traduzir um trecho de um artigo. Mas, para quem não quiser ler tudo, o texto diz que Jesus não chicoteou ninguém, nem poderia ter feito isso no Templo: teria sido preso na hora. Ele, no máximo, pôs pessoas e animais para fora.

N. Clayton Troy. «The Messianic Whippersnapper: Did Jesus Use a Whip on People in the Temple (John 2:15)?». Journal of Biblical Literature, Vol. 128, N˚ 3 (outono de 2009), pp. 555-568. Tradução de Pedro Sette-Câmara de trecho selecionado.

Se os artistas medievais e renascentistas indicam algo, a dita purgação do templo há de ter sido um dos mais importantes episódios na vida de Jesus. (2) Porém, alguns leitores do relato de João sentiram desconforto com a imagem de um Jesus violento, brandindo o chicote. Esse desconforto pode ter sido aguçado pelo fato de que a palavra usada pelo evangelista, «fragellion», pode referir um chicote “que consiste de uma tira ou tiras, frequentemente com pontas de metal, a fim de aumentar a seriedade da punição” (3). Trata-se de uma palavra emprestada do latim flagellum (daí a palavra inglesa flagellate). (4)

O substantivo grego só aparece aqui no Novo Testamento, e nunca na Septuaginta. O verbo relacionado, «fragelloo», só ocorre nas narrativas da paixão (Marcos 15, 15; Mateus 27, 26), descrevendo a flagelação de Jesus antes da crucifixão. Certamente Jesus não infligiu punição similar nas pessoas e nos animais no ambiente do templo! Por motivos tanto históricos quanto narrativos, é altamente improvável que Jesus tenha feito isso. Historicamente, como notaram muitas vezes os comentadores, armas eram proibidas na área do templo. (5) A Mishná proíbe que se traga um cajado (maqqel) para dentro do templo (Mishná Berakhot 9.5). Se os soldados romanos sob o comando de Pulatos certamente tinham flagella, os judeus dificilmente os teriam, e certamente não no ambiente do templo. Se Jesus tivesse brandido um instrumento como esse numa multidão no festival da Páscoa, seu comportamento não teria sido tolerado nem por judeus, nem por romanos. É provável que sua prisão fosse imediata. “Qualquer que tenha sido o grau de força usado, a ação não teve nada do caráter tumultuoso que teria atraído uma intervenção ligeira e drástica da guarnição romana na Fortaleza Antônia.

Mais importante, a narrativa mesma desautoriza a ideia de que Jesus brandiu um flagellum. O instrumento foi confeccionado («poiesas») ali mesmo a partir de materiais disponíveis. Estes dificilmente incluiriam tiras de couro, fragmentos de ossos, ou pedaços de metal. Além disso, João diz que o chicote foi construído ex scoinion, “a partir de cordas”. Originalmente, essas eram juncos ou caniços, semelhantes ao material de ratã ou de vime. Esse material poderia estar disponível nos leitos dos animais, ou talvez já tivesse sido moldado em cordas ou em tranças. Além disso, scoinia pode referir as cordas de outro material, como no caso das linhas usadas para amarrar um bote a um navio maior, próprio para o mar em Atos 27, 32, o único outro uso no Novo Testamento. (A palavra é usada 28 vezes na Septuaginta para referir cordas, cordões, ou linhas de medida.) Em qualquer caso, o chicote manejado por Jesus era claramente um instrumento improvisado, que mal se compararia ao instrumento romano de tortura. (7)

NOTAS

(2) Jean Lasserre, «Un contresens tenace», Cahiers de la Réconciliation (outubro de 1967): 3-21, aqui 3: «Os pintores, os tapeceiros, os escritores, através dos séculos, comprazeram-se em descrever essa cena violenta que, por conseguinte, tornou-se uma das mais populares da vida de Jesus.»

(3) BDAG, 1064.

(4) A palavra deriva da forma do latim vulgar fragellum, em que o primeiro l em flagellum mudou para r por dissimilação. Ver Herbert Weir Smyth, Greek Grammar (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press,1956), 32, §129a; BDF, p. 4, §5, 1b e p.23, §41, 2 e J. H. Moulton e W. F. Howard, A Grammar of New Testament Greek, vol. 2, Accidence and Word Formation (Edimburgo: T&T Clark, 1920), 103.

(5) Raymond E. Brown, The Gospel according to John: Introduction, Translation, and Notes (2 vols.; AB 29, 29A; Garden City, NY: Doubleday, 1966,1970), 1:115; Craig S. Keener, The Gospel of John: A Commentary (2 vols.; Peabody, MA: Hendrickson, 2003), 1:521; e Rudolf Schnackenburg, The Gospel according to St. John (3 vols.; Nova York: Crossroad, 1982-90), 1:346.

(6) F. F. Bruce, The Gospel of John: Introduction, Exposition, and Notes (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), 75. Analogamente, Martin Hengel afirma: «Embora esse acontecimento não possa ser reconstruído em detalhes, ele obviamente não pode ter sido muito tumultuoso, pois a guarnição estacionada em Antonia certamente teria interferido» (The Zealots: Investigations into the Jewish Freedom Movement in the Period from Herod I until 70 A.D. [Edimburgo: T&T Clark, 1989], 216).

(7) M.-J Lagrange, Évangile selon Saint Jean (EBib, 5a ed.; Paris: Gabalda, 1936), 65: «Ele não tem nada do temível instrumento de suplício usado em Jesus (Marcos 15, 15)».

Pombas

Jesus põe para fora os animais sacrificiais e não os usa para purificar o templo; faz o gesto, apenas, indicando: isso aí agora acabou, vamos tirar daqui a bicharada. E ainda arremata virando as mesas dos cambistas.

Por que o Evangelho reportaria a fala de Jesus aos vendedores de pombas, especificamente? Ora, por causa da pomba que aparece em seu próprio batismo, simbolizando o Espírito Santo; porque Jesus agora é o próprio templo; porque as pombas eram usadas pelos pobres; e para cumprir a profecia do último versículo do profeta Zacarias:

…naquele dia não haverá mais vendedores na casa de Deus…

(Isso é muito mais interessante do que imaginar aquele Jesus revoltadaço do Twitter dando bronca em geral.)

Sinais messiânicos

17 Lembraram-se então os seus discípulos do que está escrito: O zelo da tua casa me consome (Sl 68,10).18 Perguntaram-lhe os judeus: Que sinal nos apresentas tu, para procederes deste modo? 19 Respondeu-lhes Jesus: Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias. 20 Os judeus replicaram: Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu hás de levantá-lo em três dias?! 21 Mas ele falava do templo do seu corpo.22 Depois que ressurgiu dos mortos, os seus discípulos lembraram-se destas palavras e creram na Escritura e na palavra de Jesus.

James explica que os judeus fazem a pergunta não como o puliça cheio de otoridade que vem perguntar, já batendo o cassetete na palma da mão: «Que zorra é essa, pode explicar?!», mas como quem entende muito bem o que Jesus está fazendo, e quer saber: vem cá, o senhor está fazendo o que eu acho que o senhor está fazendo?

Reproduzo a frase do James aos 9m46s: «O que ele está fazendo é, muito obviamente, juntar uma série de profecias de cumprimento messiânico, e, naturalmente, eles querem entender melhor; não é uma pergunta idiota.»

Ou seja: um pregador chega com seus discípulos ao Templo, dá um trollada de mestre no dia de festa, agindo como se fosse o Messias, encenando com conhecimento alguns versículos importantes. Não por acaso, esse teria sido um dos episódios que precipitariam a Paixão.

O zelo da tua casa me consome

Sem querer dar spoiler, se o leitor tem alguma familiaridade com o cristianismo, já sabe que Jesus se refere à própria ressurreição ao falar do templo que será levantado em três dias.

Agora, tudo bem se o leitor, como eu, até anteontem, achar muito obscuro esse trecho da vida de Jesus. Até os discípulos, que lá estavam, só foram entender depois da morte do mestre o que significava, além de tudo, terem recordado naquela hora o versículo «O zelo da tua casa me consome».

Era algo bastante literal: Jesus logo seria consumido, morto, justamente por seu zelo.

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