047 Eis que um jornalista cria um linchamento

Nelson Rodrigues já tinha mostrado tudo em «O beijo no asfalto»

Agora que o Substack me ofereceu a possibilidade de enviar vídeos, e que (outra vez) pareço estar bem de saúde, pretendo complementar os emails semanais com um vídeo. Devo retomar a gravação de aulas do curso Desejo & Orgulho nesta terça.

O beijo no asfalto

O delegado Cunha deu um tapa na barriga de uma mulher grávida. «Ela abortou, não sei por quê», explica ele ao jornalista Amado Ribeiro. Na verdade, Cunha já estava fulo da vida com Ribeiro, que publicou no jornal que ele dera um chute na barriga da mulher. Mas, em vez de prestar atenção às lamúrias de Cunha quanto a suas impropriedades, Ribeiro tem um negócio a propor-lhe: acaba de acontecer ali embaixo, na rua, uma coisa muito esquisita.

Mas o que houve?

Um lotação (um ônibus) atropelara um homem. Arandir, trabalhador recém-casado, correu para acudir. Aproximando-se do moribundo, este lhe pede um beijo, e Arandir beija o moribundo ali, na boca, na frente de todo mundo.

CUNHA — Qual é o caso?

AMADO — Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi atropelado. Estava juntinho de mim. Nessa distância. O fato é que caiu. Vinha um lotação raspando. Rente ao meio-fio. Apanha o cara. Em cheio. Joga longe. Há aquele bafafá. Corre pra cá, pra lá. O sujeito estava lá, estendido, morrendo.

CUNHA [que parece beber as palavras do repórter] — E daí?

AMADO [valorizando o efeito culminante] — De repente, um outro cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajoelha-se. Apanha a cabeça do atropelado e dá-lhe um beijo na boca.

CUNHA [confuso e insatisfeito] — Que mais?

AMADO [rindo] — Só.

Rapidamente o delegado Cunha adotará um cinismo sublime. Até uma criança de oito anos sabe que estamos diante de um homicídio culposo: a morte provocada sem a intenção de matar. Testemunhas não faltam. Aruba, investigador da polícia que leva Ribeiro até Cunha, é uma delas. Porém, o homicídio é irrelevante: o que importa é o beijo. O culpado perante a justiça é irrelevante quando se tem a oportunidade de apresentar à turba compradora de jornais o culpado… pelo beijo:

CUNHA [falando macio] — Conta pra mim. Conta. Conta o que você fez na Praça da Bandeira.

ARANDIR [ainda contido] — O lotação foi o culpado. [Cunha ergue-se]

CUNHA — Um momento!

ARANDIR — Mas doutor! Já estava aberto o sinal amarelo quando o lotação.

CUNHA — Ó rapaz! O lotação não interessa. Compreendeu? Não interessa. O que interessa é você.

E ainda nem acabou o primeiro ato de O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues.

A partir do beijo entre dois homens, Amado Ribeiro vai construir, pelo jornal, toda uma trama. Arandir já tinha um relacionamento com o moribundo. A viúva será ameaçada pela polícia para confirmar que já tinha visto Arandir. Arandir não poderá mais ir trabalhar sem ser assediado pelos colegas.

O último pedido de um moribundo

Um homem beijar outro homem, moribundo, em 1960, decerto havia de parecer muito esquisito. Algo fora do script, que dá margem a todo tipo de interpretação. Exatamente por isso é que é preciso perguntar: ok, isso é tão bizarro que parece estar pedindo para ser interpretado, isto é, para não ser aceito assim de cara. Um pouco como a Bíblia, que pede para ser interpretada.

Um método de interpretação da Bíblia consiste em comparar seus livros uns com os outros. Esse método vale aqui também. O que está em jogo é o tema do «último pedido», que aparece nada menos do que no primeiro conto de A vida como ela é.

Para Nelson, esses últimos pedidos tinham de ser honrados de qualquer jeito, mesmo que levassem o destinatário do pedido a um inferno, como aconteceu com Arandir — e com o personagem daquele primeiro conto.

Uma lição do presidente Lula

Verdadeiro flautista de Hamelin, o presidente Lula disse: «Nada que precisa ser muito explicado é bom.»

Arandir beijou um moribundo. A explicação que ele dá — não se nega o último desejo de um moribundo — é esquisita demais. Eu mesmo vi a peça no teatro pela primeira vez em 2001, mas foi só em 2021, quando li A vida como ela é, que aceitei totalmente o negócio do beijo.

Se você ler o texto, é claro que Arandir não tem um caso com outro homem. Se você ler as crônicas do Nelson, vê que ele não tem o menor interesse por homossexualismo. É algo que não aparece.

No teatro, o tema só aparece pela voz dos outros, como tabu — e ele usa justamente a violação do tabu para mostrar a total desagregação da vida de Arandir.

Basta ter memória para sentir o desconforto. A peça tem nada menos do que três mortos. O bebê abortado pela grávida agredida por Cunha. O atropelado. E ainda o bebê abortado pela esposa de Arandir, a pedido dele.

Agora ainda há um ponto muito, muito importante: parece que a ruína de Arandir virá de ele ter atendido o último desejo de um moribundo, que era um desejo que os outros teriam dificuldade para compreender. Não é verdade. Dizer que Arandir teve a vida arruinada porque beijou um moribundo na Praça da Bandeira é a mesma coisa que dizer que uma mulher foi estuprada porque estava de minissaia.

Todos sabemos disso. Todos fizemos alguma coisa que, devidamente explicada, é inofensiva. Muitas vezes, um romance nada mais é do que essa longa explicação. Todos sabemos que isso que fizemos, reduzido, na boca do povo, pode ser a nossa ruína. Ninguém sobreviveria a ver o que diz no confessionário reduzido a um texto de jornal, feito para simplificar e para provocar escândalo.

Quem detém o poder de agredir é o agressor. Você pode decidir o que fazer com algo que não entendeu direito — essa, aliás, é a mesma história de Reparação, de Ian McEwan. Você pode esquecer, pode tentar entender melhor caso fique intrigado — ou pode usar aquele fato difícil de entender para inventar uma história.

Existe uma tentação trágica de dizer que foi tudo «uma infelicidade do destino», e Nelson Rodrigues certamente brinca com isso. Mas aqui a única infelicidade é ter cruzado o caminho de Amado Ribeiro.

Porém, atordoado pelo beijo no asfalto, o público vai ficar perplexo, atento a um suposto caso homossexual. É como se Nelson dissesse: vejam o que está em jogo, um atropelado — «o lotação não interessa» —, dois abortos, e vocês não têm jeito, só querem saber se Arandir beija rapazes. A tragédia não está nos deuses, mas no fascínio mórbido do público de Amado Ribeiro.

O único jeito de você não cair nesse mesmo fascínio, de não ser o público de Amado Ribeiro, de não achar que Arandir de algum modo fez por merecer, é acreditar totalmente na inocência de Arandir quanto à acusação que lhe é dirigida.

Arandir, em suma, vai se dar mal porque Amado Ribeiro, sabendo que nada que precisa ser muito explicado é bom, vai criar toda a história do caso entre Arandir e o moribundo, até chegar ao bordão repetido na peça: «Não foi o primeiro beijo! Nem foi a primeira vez!»

E, ao acreditar na inocência de Arandir, a sensação de confusão que a peça transmite se dissipa, e você começa a enxergar os fios que se entremeiam na obra de arte: as mortes que ficaram em segundo plano, a crueldade (ser cruel é ser indiferente quanto às consequências) da acusação, a perplexidade de quem começa a sentir o furacão se aproximar e não sabe o que fazer…

Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara