050 Acídia e libertação da acídia (Parte 1)

Primeiro, uma visão didática da acídia

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Agora vamos lá.

1 A explicação mais didática do universo a respeito da acídia

Parece que cada vez mais pessoas no ambiente cultural da nova direita se dão conta da negatividade que domina suas vidas. Essa negatividade, essa sensação de estar travado, de estar sendo muito lentamente tragado por uma areia movediça... Tudo isso está ligado a um pecado que já explorei diversas vezes no Instagram: a acídia.

A acídia parece difícil de entender porque não captamos bem a que ela se refere. Ao ler a discussão da acídia na Suma Teológica (Secunda Secundae Partis, Q. 35, em inglês no link), especialmente o Artigo 2, guardamos que a acídia é a tristeza por achar que os bens espirituais são inacessíveis.

O pulo do gato está em entender que a convicção de que qualquer coisa que você deseja é inacessível, mesmo que não seja um «bem espiritual», já explica a acídia. Isso aparece discretamente na questão da Suma quando São Tomás fala da «tristeza segundo o mundo».

A estrutura é a mesma, o objeto é diferente. Talvez a acídia como pecado capital seja tão difícil de entender porque o número de pessoas que já tentaram «obter um bem espiritual» infelizmente parece menor do que o número de pessoas que já tentaram estudar teologia. A parte importante do entendimento da leitura consiste precisamente em saber a que as palavras se referem na famosa vida real — mas também é muito comum ser capaz de repetir palavras passe pelo entendimento de alguma coisa.

Assim, se alguma vez na vida você tentou fazer alguma coisa, desistiu, sentiu aquela vontade de desistir, ficou desanimado por achar que nunca ia conseguir, pronto: aí está a acídia.

Já tentou perder peso, sucumbiu às primeiras tentações, e achou que a perda de peso era «um bem inacessível»? Bem vindo à acídia. Já tentou escrever, sem conseguir se concentrar, sem que nada fluísse, e preferiu pensar que não nasceu para isso? Bem vindo à acídia.

Nem toda desistência é acídia, claro. Eu mesmo queria ter várias canetas-tinteiro, até que percebi que me satisfaria com algumas poucas. Já desisti de algumas carreiras porque conheci pessoas bem-sucedidas nessas carreiras e percebi: eu não sou assim, na verdade eu não tenho interesse, eu não quero isso, eu não ligo para isso da maneira como isso existe na vida real.

Essas carreiras foram, por exemplo, a de pessoa que trabalha no mercado financeiro (eu aceitaria a riqueza, claro, mas não consigo buscá-la diretamente), diplomata (sou anarquista demais), e professor universitário (não quero falar para quem não quer ouvir).

(Acho importante dizer isso porque hoje parece que muitas pessoas acreditam que praticamente qualquer coisa pode ser conquistada com esforço.)

Isso também não tem a ver com sentir-se humilhado por quem você acha genial. Milan Kundera é para mim um gênio, alguém com a carreira mais do que estabelecida, e não me sinto vagamente humilhado por ele. Ter ouvido já de duas pessoas que tenho uma mentalidade meio kunderiana significou muito para mim. Eu sofreria de acídia se, sabendo que meu negócio é escrever, eu pensasse: «nunca serei assim, nunca serei bom». Daí eu desistiria, mas continuaria lendo e falando de literatura. Só não escreveria. E talvez eu nunca seja um Kundera, mas não posso fingir que não me interesso por escrever só por causa dessa possibilidade.

Bem, acho que a acídia ficou clara a esta altura.

(Só vale dizer, porém, que acídia não tem a ver com ácido: ela vem do grego akedeo, «descuidar». Se você acha que o objetivo não será atingido, você descuida dos meios.)

2 Acídia e subsolo

O caso mais grave, que suspeito estar conectado com o subsolo dostoievskiano (todo o meu trabalho aqui é uma investigação), e talvez o mais comum, é você achar que nem sequer vale a pena tentar (vejam que não falo necessariamente de uma opinião refletida; talvez você apenas viva como se acreditasse nela).

Afinal, a acídia aparece primeiro como um pecado específico dos monges. Ela é conhecida como «o demônio do meio-dia» porque esse era o horário em que o monge ficava inquieto em sua cela. Ele desistia dos seus objetivos espirituais e, se tivesse um smartphone, ficaria dedando a tela a esmo. (Segundo São Tomás, esse fruto da acídia seria a curiositas. Pois é, ficar dedando a tela a esmo é pecado, agora ferrou.) Porém, ele já estava na cela. Se estava lá, foi porque em algum momento ele já tinha acreditado que obteria os famosos bens espirituais, e já tinha feito muita coisa para obtê-los, como ser postulante de um mosteiro, rezar muito, viver a vida monástica, etc.

O que mais vejo não é essa vontade de desistir no meio do caminho, mas a dificuldade de dar o primeiro passo. As pessoas inventam obstáculos: mas eu não sei isso, mas eu não sou como você, mas lá só tem gente de quem eu não gosto, mas nada nunca vai dar em nada.

E assim nasce a maledicência que é um dos frutos da acídia: Fulano conseguiu por causa da genética. Beltrano nasceu comendo Dom Casmurro no café da manhã. Os bilionários globalistas não vão me deixar fazer tal coisa. O feminismo arruinou as mulheres, nunca vou achar uma que preste. (Como se você prestasse.) A grande mídia vai esconder tal coisa. Serei cancelado na internet. A universidade está cheia de esquerdistas.

Existe um paralelo muito engraçado. Lembro de quando Bolsonaro foi eleito presidente, e muitas pessoas de esquerda começaram a pôr fotos de si próprias nas redes sociais com a legenda «desaparecido», como se a eleição do peculiar deputado já lhes garantisse o status de vítima fatal. Quase quatro anos depois todo mundo continua aí, toujours vivão, sem ter dado o menor sinal de ter achado que fez papel de palhaço. Sim, claro, era tudo teatro, mas talvez aquelas pessoas ao menos soubessem disso. Talvez elas soubessem que seu medo imaginário era mesmo imaginário.

O direitista, não: ele tem um medo imaginário, mas acredita que é real.

O TEXTO CONTINUA AMANHÃ

Authors
Pedro Sette-Câmara