058 A deppiana jurídica expressão
O.J. Simpson e a festa em Nova York; Amber Heard x Johnny Depp
Nunca tive muita certeza de que transmitir julgamentos ao vivo pela TV fosse boa ideia. Parece haver aí uma oposição de princípios. Um julgamento no tribunal é precisamente o contrário de um linchamento pela multidão. Ou você protege os acusados, ou convida a multidão.
Sim, claro: já ouço a voz que diz que todo julgamento pode ser enviesado, e tenho certeza de que existem estudos científicos que comprovam, para além da dúvida razoável, a existência do viés. Disso, porém, não consigo deduzir que a multidão de telespectadores passe a representar uma autoridade moral corretora.
Lembro de quando pensei nisso tudo pela primeira vez. Eu estudava na New York University. Um dia — a Viquipédia me garante que foi 3 de outubro de 1995 — a cidade parecia deserta. Entre uma aula e outra, fui almoçar numa bodega em que a qualidade da comida superava ligeiramente a do décor frio e frigorífico. Ninguém nas ruas. O leitor que conhece a área em torno de Washington Square sabe o quanto isso é estranho — eerie, para usar a língua daqueles locais.
De repente, gritos. O. J. not guilty! O. J. not guilty! E o bairro inteiro parece ficar em festa. Coisa impressionante. Só fui reencontrar aquela atmosfera de leveza uma vez na vida: durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
Sim, eu era o panaca que não sabia que naquele dia saía o veredito do julgamento do Ôu Djêi. Em minha defesa, digo que sempre fui meio alheio às atualidades. Por exemplo, dentre ministros brasileiros atuais, só sei nomear o Paulo Guedes.
Mas aquilo me chamava a atenção. Como a transformação de um julgamento num grande acontecimento midiático poderia não ter um impacto negativo? Como a inserção da questão racial — se O.J. for condenado, isso prova o racismo — não interferiria?
Minhas preocupações adolescentes voltaram quando vi a muy buena série sobre O. J. Simpson da franquia American Crime Story — na Netflix, pode ser? Com Sarah Paulson (always a plus) como promotora e Cuba Gooding, Jr. como O.J. E agora me ocorre que até hoje não consigo lembrar qual esporte O.J. jogava.
A série me esclareceu, na verdade. Na época, apenas fiquei impressionado com o que vi, mas nem sequer abri um jornal para me informar. Em 2020 e alguma coisa, fiquei sabendo que O.J. pode ter sido inocentado no tribunal, mas, em seu círculo, ninguém acreditou na sua inocência. Seus amigos sumiram. Nem sequer uma mesa no restaurante favorito ele conseguia mais.
Dois julgamentos. Um da justiça, outro do povo. Ou três julgamentos: um da justiça, um dos amigos e do círculo social de O.J., e outro dos que viram no caso uma bandeira racial.
Os julgamentos separados, agora, se repetem como mais do que farsa na disputa entre Amber Heard e Johnny Depp. Gastei uns 15 minutos da minha vida assistindo a clipes no YouTube. Ela, com uma cara que mistura a náusea física e a indignação moral. Ele, se divertindo pacas.
Também, nos clipes que vi, os advogados de Miss Heard passavam muito longe da incisiva eloquência de James Spader como o Alan Shore de Boston Legal. Mais pareciam alunos da sétima série apresentando um trabalho copiado e colado da Viquipédia na noite anterior.
Do lado de fora do tribunal, os vídeos mostram mulheres loucas por Depp que ainda gritam para Heard: «Ó, senhorita Heard, por que cagais na cama?», why you gotta poop on the bed? Sim, porque ela fez isso. O que garantirá que, por muito tempo, sempre que seu rosto aparecer num clipe no YouTube, um emoji de cocô — human fecal matter, na deppiana jurídica expressão — aparecerá ao lado.
Que inocência a minha. Nos tempos do O.J., a questão racial era uma questão séria. A interferência dela no devido processo legal poderia suscitar grandes discussões em augustos auditórios universitários. Agora, porém, o julgamento para os telespectadores já parece ter sido totalmente separado do julgamento para o juiz e para o júri. Aliás, parece até que este é um pretexto para aquele. Tanto que eu nem sei direito qual o teor do julgamento, é ela que está processando ele, não é isso?
Ah. Não. Obrigado, seu Google.