Se você acredita que a essência das coisas já era conhecida, que as melhores maneiras de viver, aquelas que estão de acordo com essas essências, já foram experimentadas e difundidas, então ficaria difícil para mim entender como você não seria triste e conspiracionista. E kitsch, também.
É porque você acredita nisso que você só pensa no resgate e na restauração de uma suposta «alta cultura», na defesa de supostos «valores», e, até onde for possível, na sua própria proteção.
É disso que decorre todo esse vocabulário militar, de quem se vê lutando nas últimas trincheiras, enquanto os amigos são mortos pelos malévolos poderes globalistas / esquerdistas / progressistas / você decide.
Admito: talvez eu esteja diante de um obstáculo intransponível. Talvez eu não consiga jamais convencer ninguém a sair dessa atitude — a defesa da taba do Ocidente contra os portugueses modernistas que vieram destruí-la —, a menos que essa pessoa já esteja suspeitando um pouco de si mesma.
Suspeitando, como falei, da própria tristeza, associada à acídia. Pior ainda, se você for ao São Tomás, verá que essa tristeza não é nem a tristeza que ele diz ser boa, porque nasce da consciência do pecado, mas a tristeza ruim, uma tristeza do mundo, que existe porque você acha que não nasceu numa determinada época, num determinado lugar, ou numa determinada posição social.
Suspeitando que o George Soros não está embaixo da cama. Entendendo que você pode ter um grande controle sobre a própria vida. Para isso, basta querer. Não sou da turma que acha que tudo se resolve querendo, mas isso não quer dizer que, com força de vontade, você não possa ter nenhuma melhora de vida.
É mais fácil ler uma história empolgante e misteriosa sobre como grupos nem tão secretos de bilionários estão destruindo «o mundo» do que ter algum domínio sobre o seu ambiente imediato. Ela ainda faz cócegas naquele nosso instinto espertinho de não querer ser enganado: tudo menos ser trouxa.
A tristeza e o conspiracionismo decorrem naturalmente, em suma, de você supor que tudo de bom ficou para trás — e, se ficou para trás, foi porque alguma serpente apareceu no Paraíso para desconectar o ser humano daquelas essências, tão eternas quanto esquecidas.
Agora, talvez você tenha — ou diga ter, e nesse caso posso tentar fazer você levar a sério suas próprias palavras — alguma vocação filosófica. Nesse caso, é mais fácil entender a vida como uma descoberta. A filosofia não nasce do espanto? Esse espanto, claro, pode ser tanto um encanto, uma admiração diante de algo maravilhoso, quanto um coçar de cabeça diante de uma contradição.
E aí estamos em vantagem, porque a sua visão de mundo triste e conspiracionista oferece contradições suficientes. Ela não é feita de valores eternos, mas de valores construídos ao longo da história... recente.
Sempre recordo alguns exemplos.
O casamento por amor que leva a uma relação de companheirismo surgiu no final do século XVII. (Isso explica, enfim, porque todas aquelas histórias e poemas de amor da Idade Média e do Renascimento falam de adultério.) Ele ainda levou algum tempo para virar a norma.
É interessante que isso tenha surgido junto com a percepção de que a infância poderia ser um tempo de inocência. Mais pessoas — não apenas os nobres e ricos — passaram a viver em casas divididas por quartos. A difusão da leitura aguçava a sensação de intimidade, já que a leitura também pode ser uma atividade solitária. E crescia a expectativa de que as crianças soubessem ler. Como ficou mais fácil separar as crianças das informações — que ficavam atrás de certas paredes, ou em livros que elas não eram capazes de ler —, surgiu a ideia da infância inocente.
(Aliás, no Evangelho, quando Cristo fala dos pequeninos, ele não quer dizer «os inocentes», mas «os insignificantes, os que são menos considerados».)
Até por isso você não precisa de conspiracionismo. Não há uma conspiração contra a infância: num mundo dominado pela TV e pela internet, por tecnologias que levam qualquer informação a qualquer pessoa, não pode haver a inocência de um romance inglês do século XIX.
Ou você vai virar Amish, e largar o aparelho em que provavelmente está lendo este texto, ou vai admitir, espero, que não existe computador (o que inclui o smartphone) sem a destruição de várias barreiras à informação, sem o estímulo ao imediatismo. Se você já sentiu um pingo de insatisfação por não encontrar uma informação na internet, como se ela devesse isso a você, você já é cúmplice.
Eu mesmo me interesso muito por esse problema, que é o problema do romance realista do século XIX, e que, aliás compõe uma grande parte daquilo que você chama de «alta cultura». Esse romance não é uma preservação de ideais, nem uma fixação de ideais. Não é didático. Ele é uma investigação: como vamos viver com esses novos ideais em que acreditamos? Quais os riscos do casamento por amor? O que é o amor, aliás? O que é a ambição?
Toda essa «alta cultura», que inclui Orgulho e preconceito, O vermelho e o negro, Middlemarch, ou Os irmãos Karamázov é uma pergunta a respeito do sentido da vida — justamente porque a pergunta a respeito do sentido só pode existir num mundo em que não existe mais ordem nem hierarquia. Afinal, se você nasceu filho de sapateiro e filho de sapateiro morrerá, se vai se casar com alguém que seja aprovado pela sua família, se «ouvir o próprio coração» é o caminho da desonra e da desgraça... Não há porque buscar sentido nenhum. Já está tudo dado. Na Idade Média, o dr. Viktor Frankl teria zero pacientes.
Porém, em vez de realmente ler as obras, de entrar no projeto da educação liberal, você prefere adotar uma estética kitsch, que deixa de lado todos os problemas e imagina que, antigamente, todo grande artista era o martelador das verdades eternas contra o mundo mau.
Kitsch no sentido mesmo definido por Milan Kundera em A insustentável leveza do ser: a «antítese da merda» (sempre penso num quadro de Bouguereau ao pensar nisso). Sentido esse que é muito parecido com o que Yves Bonnefoy e, em sua esteira, Bruno Tolentino deram ao «mundo como Ideia»: a ausência da morte, uma eternidade de mentira, um mundo perfeito falsificado e comprado no AliExpress, que você admira sem entender como um turista que tenta ver o Louvre inteiro num dia só e, por isso mesmo, não se lembra de nada.
Você critica a arquitetura das cidades modernas, com seus caixotes de chumbo — mas adora um shopping center.
Em suma, você é exatamente como o adolescente americano que, ao entrar na faculdade, diz que certos textos são desagradáveis e «dão gatilho» (são triggering) e exige a criação de safe spaces.
É esse o seu ideal: um safe space para a taba reaça, em que os valores eternos sejam preservados segundo a sua visão kitsch, um shopping center de «alta cultura» em que os seguranças são idolatrados. Logo você estará pedindo que o governo crie a FUNAI para os reaças, o Ministério dos Valores Eternos.
Mas, se você simplesmente se dedicar a uma questão qualquer dessas que mencionei, se ler um desses livros, vai se deparar com um monte de incertezas — e aí é que veremos quem permanece tranquilo ao admitir que não sabe algo, e quem prefere voltar para o shopping, onde há muitos vendedores prometendo cursos para alimentar o seu medo da vida lá fora.