1 O futuro presidente será (já é) odiado
Esses dias, fui ouvir o último Répliques. Alain Finkielkraut abria o programa, uma análise da eleição francesa, notando algo aparentemente excepcional na história do país: o presidente eleito era odiado por uma parcela significativa de eleitores.
Não era respeitado. Não era aceito, mesmo contra a vontade. Era francamente odiado.
Não foi a primeira vez que o Répliques me chamou a atenção para alguma especificidade francesa. Devo ter comentado aqui o quanto me surpreendeu que Finkielkraut e seus convidados tenham ficado chocados, no começo da pandemia, com a sugestão de que talvez não devessem confiar no governo. Não confiar no governo? Você quer tirar o chão de debaixo dos meus pés?
O Brasil, claro, já está adiantado nos dois quesitos. Quem quer que seja o presidente — atual ou eleito ao fim de 2022 —, será odiado sem ser respeitado por uma quantidade significativa de eleitores, aos quais raramente ocorre confiar no governo.
Também não parece que vá surgir um candidato da unificação do país (nem na França, aliás). Não sinto esse clima, mas devo recordar que não sou muito perceptivo quanto ao famoso «grande público»: traduzi Podres de mimados me perguntando se o brasileiro realmente gostaria de ler a respeito das agruras da suposta underclass britânica, e até agosto ou setembro de 2018 me perguntei se Bolsonaro teria mesmo alguma chance de ser eleito.
E agora me pergunto, realmente curioso: a união Lula-Alckmin de um lado parece a tentativa de unificação em torno do bode expiatório presidencial, a tentativa mais do que conservadora — eu diria ancestralmente conservadora, conservadora num sentido primitivo mesmo, tribal — de restaurar a velha ordem, congregando os antigos inimigos contra esse novo inimigo que a desafiou; mas, de outro, será que essa união de inimigos, esse apagamento de diferenças entre Lula e Alckmin, não é apenas mais um sinal do efeito Bolsonaro, que corrói todas as diferenças? Não é apenas mais um estágio daquele processo que, já em 2019, fazia Haddad e Manuela d’Ávila dizerem-se defensores da democracia liberal — eles que, antes, teriam denunciado o «Estado burguês»?
É precisamente essa corrosão das diferenças que me assusta. Quanto menos diferenças, quanto mais igualdade, mais raiva.
2 Medusa
Durante os últimos quatro anos vi pessoas inteligentes, brilhantes mesmo, ficarem absolutamente petrificadas, «medusadas» por Bolsonaro, como se apenas o presidente existisse, como se todos os demais assuntos tivessem desaparecido.
Entendi melhor essa experiência pensando em mim mesmo: quando ouço a voz fingidamente neutra de um locutor de TV apresentando notícias, ou quando vem de fora, da janela, um som alto e indesejado, a única coisa que consigo fazer é isolar-me. Até eu conseguir fazer isso, é como se eu estivesse de nariz tapado por estar passando por um caminhão de lixo: não consigo nem respirar, que dirá ter uma conversa razoável. Não me importa o motivo do som, não me importa o que diz a lei, apenas me importa que eu pare de ouvi-lo.
Nesse estado, não existem mais distinções. Não importa quem está ao meu lado. Não importa nem onde estou. Se alguém me der a mão para me tirar dali, vou dar a mão. Depois é depois.