E ainda devo dizer: sempre que leio a expressão «uma nova era está chegando», entendo: você, que ainda não comprou, vai comprar agora; a nova era está aí na sua carteira — onde mais?
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Qual a semelhança entre uma senhorita seminua num site que vende calcinhas e uma senhora respeitável, plenamente vestida, aliás com um estilo que flerta com o povo Amish, vendendo o segredo da família feliz?
Perguntei a semelhança. Porque, claro, o produto vendido é diferente. A modelo…
A semelhança está na venda, uai.
Para a maioria das pessoas, essas modelos têm algo de humilhante. Nem todo mundo nasceu para brilhar só de calcinha na internet — e a questão naquelas fotos nem está só no corpo da modelo, mas em toda a sensação de perfeição que é transmitida. A mesma sensação de perfeição, aliás, daquela família feliz — apenas com outro sabor.
Também é claro que, no quesito «venda de lingerie», já existe um grande movimento para desmistificar essa perfeição, exigindo que a venda de calcinhas não seja feita apenas por corpos inimitáveis.
Além disso, o «público» — digamos — da lingerie sabe que uma foto daquelas vem com fotografia profissional, luz profissional, Photoshop profissional. O público já sabe que uma foto de venda de lingerie é um tipo de ficção.
Não que o distinto público deixe de continuar se sentindo humilhado. Prova disso é que, quando uma daquelas senhoritas supostamente perfeitas ousa exibir uma celulite num desfile, a maldade corre para acusá-la na internet: enfim, caiu do pedestal; enfim, ela é uma de nós. Não é um suspiro de alívio: é o ódio que nasce da sensação de humilhação, contido até o aparecimento da primeira válvula de escape.
Por isso, até, se você está vendendo perfeição na internet, saiba que seu destino é esse. Um dia sua celulite ficará à mostra. E aí…
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Essa mesma lógica também aparece em produtos para homens. Eis aqui o grande modelo que sabe perfeitamente o que quer, que vence todos os obstáculos, que não desiste diante do maior perigo.
Ou: eis aqui o homem de pleno discernimento, que conhece sua vocação, que mede seus talentos, que não é infiel à própria alma, e assim vive na plenitude. O homem que segue os modelos tradicionais da hombridade tradicional, e por isso mesmo triunfa no mundo moderno. Um líder.
E assim fico recebendo mensagens de jovens desesperados, que não sabem o que fazer da vida. Eles talvez julguem que, comprando o produto digital correto, conseguirão virar uma estranha mistura de Rambo e Aristóteles, e conquistarão aquilo que efetivamente desejam: o direito ao triunfalismo, o exibicionismo justificado — o mesmo que enxergam em seus modelos internéticos.
(Muitos, é claro, já descobriram que você pode simplesmente se exibir: o público não tem lá tanto discernimento assim. Basta você declarar peremptoriamente que é a Maior Otoridade no Assunto para tornar-se, aos olhos desse público, a Maior Otoridade no Assunto.)
Eu mesmo encontro (e às vezes até traduzo) livros que apresentam a maneira ideal de agir. Se você fizer tal coisa assim, então terá executado um gesto perfeito, e sua vida se abrirá.
O efeito é o mesmo efeito de Medusa de que venho falando, e é o mesmo efeito de Medusa da senhorita de calcinha e da senhora feliz: diante de um ideal inatingível, você fica paralisado. Aliás, não só paralisado, como acumulando um ódio que você, primeiro, dirige para si mesmo. Como você não tem o discernimento, a inteligência, a vocação, a bunda sem celulites?
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O ponto interessante é que, no texto anterior, eu realmente falava de um «efeito Medusa» provocado pela rivalidade. Você odeia o mundo moderno, o capitalismo, Putin, Lula, Bolsonário, os EUA, não sei — e tudo, até moer o próprio café em vez de comprar um saco (ou uma cápsula) de café em pó (que vem com outras coisas, como gravetos) vai se tornando «um gesto de resistência».
Aqui, porém, estou pensando nesse mesmo efeito provocado por alguém que você diz admirar. Lá está a linda mulher com seu corpo perfeito, lá está o grande homem de sucesso cuja vida é uma sequência de decisões acertadas — e eu, tão pequeno, como posso começar? Como posso, a partir desta forma decadente, transformar-me em Mumm-Ra, o de vida eterna?
Comprando o curso online?
Pois é. No começo, falei que a semelhança era uma venda. Um modo de suscitar o desejo é justamente a humilhação. A ideia de que existe um outro mundo que não é o seu, um mundo em que você realmente não deveria entrar, mas que, uma vez, uma vezinha só, vai abrir as portas, e deixar você entrar, e só vai deixar porque você vai pagar o preço para mostrar que merece…
Isso tudo tem a ver com você deixar de se sentir humilhado, como se, agora, você pudesse participar da divindade daquela pessoa. É a mesma atitude utilizada pelas «coquetes» dos romances: seduzir é prometer muito e entregar umas migalhinhas, na esperança de que um dia, quem sabe, a promessa seja cumprida.
Mas, quando essa coquete cobra, sabemos o nome que ela tem.