062 «Middlemarch» & a história não contada da direitista brasileira
Moças idealistas despencando em realidades nada ideais
Hoje em dia há tantas receitas e tanta preocupação com o escrever «bem» que Middlemarch, e talvez todo grande romance realista do século XIX, surpreende pela descontração. George Eliot (Mary Ann Evans, ou Marian Evans) abre com um prelúdio em que enuncia claramente a questão central do romance: como seria a vida de uma mulher magnânima, isto é, de grande alma, de grande desejo, num ambiente mesquinho que nem sequer conseguisse entender quem ela é?
Em seguida, no primeiro capítulo, George Eliot passa despreocupadamente de uma longa caracterização da protagonista Dorothea Brooke para uma cena dela com a irmã Celia. Não há o começo no meio da ação — o bom e velho in media res, utilizado em bestsellers como A amiga genial — com ganchos que garantam que o leitor chegará ao segundo capítulo. Nada disso: aqui está meu tema, aqui está minha protagonista, está tudo às claras, sem maiores tentativas de sedução.
Além de Middlemarch me parecer o maior romance de todos os tempos, escrito pela pessoa mais perspicaz de todos os tempos, sempre me impressionou um pouco que sua heroína Dorothea não fosse mais conhecida e amada pelas mulheres da direita brasileira. Afinal, elas são idealistas, querem um casamento sério, de comunhão de almas, de parceria, têm o ideal de formar famílias numerosas, e fariam tudo pelo homem intelectual que se destacou de um ambiente que lhes parece mesquinho, materialista, francamente vil, e ajudou a firmar nelas esses ideais.
Quantas vezes cada pessoa que se vê como leitora e interessada em coisas mais, digamos, elevadas, não se ressentiu
E, assim como a situação dessas moças tem uma clara analogia com a de Dorothea — que, aos dezenove anos, sonha com um marido que lhe ensine hebraico e mal tolera a futilidade do tio e de um pretendente, embora, ao menos desde um ponto de vista mundano, não haja rigorosamente nada de errado com essas pessoas —, também é provável que, movidas pelo mesmo idealismo, tenham escolhido cedo demais um parceiro para a vida toda, crentes de que assim começava uma grande aventura, e...
Como é a vida dessas moças que julgaram ver naquele homem bom de textão na internet a porta de entrada para uma vida rústica «contra o sistema», em que filhos e mais filhos seriam criados segundo os melhores modelos… e acabaram descobrindo, ou aceitando, talvez já na segunda gravidez, que aquele homem era bom mesmo só para fazer textões na internet?
Para onde vai toda a energia que elas têm? Fica represada, como uma resignação azeda? Elas passam a considerar o divórcio? Como elas vivem a descoberta de que o casamento não corresponderá a nenhuma das suas expectativas?
Será que elas chegam a se ver também responsáveis pela enrascada em que se meteram? Será que percebem que o que chamavam de amor vinha de um certo orgulho, de uma certa visão idealizada de si mesmas?
Será que chegam a perceber que não adianta culpar o ambiente brasileiro? Que ninguém liga para suas sofisticadas visões sociológicas?
Mais interessante ainda: e se, fiéis à ideia da virtude, batalhadoras na famosa vida real, elas, sem perceber, acabam descobrindo o amor… na pessoa de outro homem? Afinal, todas essas aventuras podem perfeitamente acontecer entre os vinte e os trinta, quando ainda resta muita vida para viver.
Sempre me pergunto se não há Dorotheas por aí, querendo usar véu e ler as vidas de santos num mundo de Faustão e funk, e descobrindo que talvez casar-se com o primeiro representante dos Sublimes Ideais que lhes aparece pela frente não tenha sido a melhor ideia.
Pensando nisso, como esta semana recebi um exemplar em papel de Middlemarch, decidi traduzir o «Prelúdio» do livro. A editora Pinard logo (mas logo mesmo) vai relançar a lendária tradução de Leonardo Fróes para o romance.
Middlemarch: «Prelúdio»
Quem, dentre os que muito se interessam pela história do homem, e pela maneira como essa misteriosa mistura se comporta nos variados experimentos do Tempo, não se deteve, por pouco que fosse, na vida de Santa Teresa, não sorriu com certa brandura ao pensar na garotinha que um dia saiu de casa, de mãos dadas com o irmãozinho ainda mais novo, para buscar o martírio no país dos mouros? Lá partiram eles da tosca Ávila, de olhos esbugalhados e aparência indefesa como dois veadinhos, mas com corações humanos, já batendo por uma ideia nacional; eis, porém, que a realidade doméstica vai ao encontro deles na forma de tios, e os obriga a voltar atrás em sua grande resolução. Foi um bom começo essa peregrinação infantil. A natureza apaixonada e idealista de Teresa exigia uma vida épica: o que eram, para ela, os muitos volumes de romances de cavalaria e as conquistas sociais de uma moça inteligente? Sua chama logo consumiu aquele combustível ligeiro; e, alimentada por dentro, levantou-se em busca de alguma satisfação ilimitável, de algum objeto que nunca desse motivo de cansaço, que conciliasse o desespero de si com a consciência arrebatada da vida além de si. Ela encontrou seu epos na reforma de uma ordem religiosa.
Essa espanhola que viveu trezentos anos atrás decerto não foi a última de sua estirpe. Muitas Teresas nasceram sem ter encontrado para si vidas épicas em que houvesse um constante desenrolar de ações que ecoassem longe; talvez apenas uma vida de erros, fruto de uma certa grandiosidade espiritual em desarmonia com a mesquinhez de oportunidades; talvez uma falha trágica que não encontrou nenhum poeta sagrado e resvalou no esquecimento sem ser chorada. Com luzes tênues e circunstâncias complicadas, elas tentaram moldar pensamento e ato em nobre concórdia; mas, no fim das contas, a olhos vulgares seus esforços pareceram mera incoerência e informidade; isso porque essas Teresas tardias não tiveram a ajuda de uma coesão entre fé e ordem social que pudesse desempenhar a função de conhecimento para a alma de vontade ardorosa. Seu ardor alternava entre um vago ideal e o anseio comum à condição feminina; assim, um era censurado como extravagância, e o outro, condenado como falha.
Alguns julgaram que essas vidas cambaleantes devem-se à inconveniente indefinitude com que o Poder Supremo moldou as naturezas das mulheres; se houvesse um único nível de incompetência feminina, como a capacidade de contar somente até três, o destino social das mulheres talvez pudesse ser tratado com certeza científica. Enquanto isso, a indefinitude permanece, e os limites da variação são na verdade muito mais amplos do que se poderia imaginar a partir dos penteados femininos e das histórias de amor favoritas, em prosa e verso. Aqui e ali um cisne é criado com dificuldades entre os patinhos na lagoa estanque, e nunca encontra a corrente viva na companhia com sua própria espécie palmípede. Aqui e ali nasce uma Santa Teresa, fundadora de nada, cujas pulsações e soluços por um bem inatingido se esvaem e são dispersados entre impedimentos, ao invés de centrar-se num feito amplamente reconhecível.