Hamlet, como todos sabem, está mais exasperado do que o príncipe Charles. Hamlet vem de Wittenberg para o castelo de Elsinore na expectativa de ser coroado. Seu pai, o rei Hamlet, faleceu. E o que ele encontra? O tio Claudius casado com a viúva, sua mãe, e muito bem empoleirado no trono. A não-cereja do não-bolo é a aparição do fantasma do pai: Claudius teria matado o velho rei, e agora o eterno príncipe Hamlet terá de vingá-lo.
René Girard acredita que Hamlet traz um Shakespeare exasperado com as tragédias de vingança. Um bate, o outro rebate, é sempre a mesma lenga-lenga, um realejo cósmico. Até quando, Senhor?
Cá no Brasil estamos no mesmo estágio. A cada pérola «progressista» que a grande mídia nos traz, temos a mesma reação entre os conservadores com ou sem aspas: uma espécie de competição para ver quem vai conseguir revirar os olhos mais vezes, como se fosse a menina possuída do Exorcista a entrar num debate.
E as oportunidades de mudar o disco vão sendo perdidas. Como, em geral, somos nós, reaças, que nos dizemos cristãos, ficarei à vontade para imaginar algumas soluções, digamos, compatíveis com a proposta da nossa excelsa religião.
É que há alguns dias voltou a história de o verbo «denegrir» ser racista. A oportunidade é ótima porque os conservadores têm toda razão: é preciso uma forçação de barra excepcional para enxergar o preconceito num verbo que, desde sua origem latina, tem o mesmo sentido. Seria como dizer que, no Evangelho de João, um clássico escrito por gente não lá muito ariana, há racismo quando se diz que et lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non comprehenderunt.
Esta, porém, é como uma briga de casal. É preciso ser um pouco autista (como eu, provavelmente) para pressupor que basta ter razão para que a razão gere o convencimento e a mudança, a deposição das armas, o cessar fogo, e, por que não, a paz perpétua, com a clara vitória do lado dono da razão. Nada disso: essa questão, em si, é mais do que tudo um sintoma.
Sintoma de que a direita está pronta, é claro, para uma discussão linguística simples, mas não para falar do que motiva essa discussão simples, que é a discussão maior do legado da escravidão no Brasil. E estou falando de simplesmente aceitar a discussão.
Sim, eu sei que quando nos falam em «racismo estrutural» e «racismo institucional», parece que estão nos falando de um tipo novo de racismo… Já crescemos aprendendo na escola que o racismo é uma coisa feia, e agora temos de lidar com esse outro racismo, um racismo 2.0, o senhor por acaso está insinuando que eu… que ainda por cima é crime…?
E no entanto os conservadores dizem gostar de Joaquim Nabuco, cuja frase mais famosa deve ser «a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil». Logo Nabuco acrescenta, no mesmo trecho, que, em relação ao país, e especialmente em relação ao Norte (hoje o Nordeste), a escravidão «insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte…»
Não é esse um trecho que mereceria ser discutido? Essa superficialidade não parece afetar os descendentes de escravos e senhores ainda hoje?
Os conservadores também dizem gostar de Nelson Rodrigues. Nelson insistia que o Brasil é um país racista — e chegou a escrever uma peça, Anjo negro, para falar do ódio de si que o negro aprendeu com a escravidão.
E um carioca, acostumado a passar pela Praça XV, não fica estarrecido ao saber que José de Alencar, aquele mesmo Alencar de A viuvinha e de Senhora, membro do Partido Conservador, quando foi ministro da Justiça, mandou tirar o mercado de escravos dali, não porque a escravidão fosse intrinsecamente abjeta — afinal, ele mesmo defendia a escravidão —, mas porque era a primeira coisa que o estrangeiro via ao pisar na capital do Império?
(Porém, não acho que devamos parar de ler José de Alencar. O cânone literário não é um cânone da bondade. Escritores canonizados não são santos canonizados. Além disso, o cânone não é um quarto e sala — é uma mansão que pode ser expandida indefinidamente.)
Não seria bom que houvesse ao menos um monumento à escravidão ali na Praça XV, por onde passam multidões todos os dias? Eu me lembro do frio que senti, em Olinda, ao ler uma placa que dizia que naquela praça onde eu estava eram vendidos escravos…
Nós, às direitas, perdemos essa. Não quisemos discutir. Bastou — e eu sou culpado disso também — ter razão nos pontos acidentais. O verbo «denegrir» é antigo demais para ser racista em sentido moderno, e a discussão do racismo brasileiro de fato me parece tão genuinamente brasileira quanto… eu ia dizer um Cheddar McMelt. Mas posso dizer: tão genuinamente brasileira quanto o culto a Margaret Thatcher.
Mas não quisemos criar outra conversa a respeito do legado da escravidão. E assim…
Agora, aliás, veremos uma direita ainda mais jovem formar-se com todo tipo de crença folclórica: minha favorita é a ideia de sociedade tradicional e conservadora, com a mulher como rainha do lar e o homem como grande guerreiro e provedor, porque essa ideia é totalmente pagã e foi apenas herdada pelo cristianismo. Ela está mais próxima de Esparta do que de Jerusalém.
Mesmo assim, a grande vantagem de saber algo é poder mudar de atitude. Não precisamos ficar como Shakespeare, entediados com as brigas que, iguais, sempre se repetem. Não precisamos ensaiar a revirada quíntupla de olhos para a próxima vez em que alguém sugerir que o verbo «denegrir» é racista. Em vez de nos sentirmos acuados por um mundo que seria supostamente cada vez mais às esquerdas, podemos pegar o bonde andando mesmo, e admitir que a questão é simplesmente o uso de um verbo — esse é só o sintoma.
Podemos até lembrar que não foram nobres ingleses de peruca os primeiros a abolir a escravidão, mas revolucionários franceses de peruca que fizeram isso, já em 1794 (sim, bem na época do «Terror» da Revolução Francesa), e entender que, se algo parece surgir do nada para nos morder, é porque esse algo sempre esteve aí, porque essa violência sempre esteve aí, e nós preferimos ignorá-la, escondendo-nos atrás da douta recordação de que, afinal, «denegrir» vem do latim…