Lembro de um professor que dizia que «não existia estupro homossexual», porque na lei brasileira isso era um «atentado violento ao pudor». Era óbvio que ele confundia a língua corrente com o jargão jurídico. É óbvio que, se eu for advogado, vou falar jargão jurídico — mesmo que ele tenha algo de arcano para os reles mortais, é razoável que eu espere a compreensão dos meus pares.
Nada nesta vida é feito sem jargão. Eu mesmo sempre gostei de dizer que nada é mais divertidamente pomposo do que o jargão da métrica poética; quem não sabe o que é um «hexâmetro datílico espondaico» (vulgo «espondeu»), o metro em que estão escritas a Ilíada e a Odisseia, pode ficar apavorado e preferir uma tradução em prosa. Mas é apenas um nome, e em dez minutos qualquer um pode entender o que ele refere.
Surge um problema quando um termo de um jargão é idêntico — permitam-me: homógrafo e homófono, ou seja, é escrito e falado do mesmo jeito — a um termo da linguagem corrente. Aí você corre o sério risco de entender uma frase num sentido… totalmente errado. E pode até basear sua vida inteira num mero equívoco de palavras.
Tudo isso me veio quando me deparei com uma foto no Instagram cuja legenda dizia que «o amor é um ato da vontade», e atribuía a frase a São Tomás de Aquino. Essa frase pode ser deduzida do que São Tomás diz a respeito do amor e da vontade nas questões 59, 60, e 82 da Suma Teológica.
Discutir o que ele quer dizer com «amor» já traria complicações, porque ele o trata mais como sinônimo de «dileção» (dilectio) do que como sinônimo daquilo que existe quando, nas ancestrais palavras de uma amiga da escola, rola um lance de pele. Mas o problema mesmo está na «vontade».
Na língua corrente, a «vontade» está próxima da «força de vontade», que é a nossa capacidade de fazer aquilo que é desagradável quando — já que estou aqui no português mais comum — não estamos a fim. Lavar a louça. Suportar chatices, como o folclórico violão na igreja. Ir à academia. Fazer dieta. Trabalhar para cumprir um prazo em vez de tomar um vinho.
O detalhe é que, para São Tomás de Aquino, nada disso tem a ver com a «vontade». Os atos que acabei de descrever são atos do que ele chama de «apetite irascível».
Questão 59, Artigo 4, Resposta à Objeção 3: «o ato do apetite irascível é algo árduo que pertence à ordem sensível».
(Como outro dia apareceu-me no Instagram uma pessoa ansiosa com os limites da linguagem humana, preciso dizer: nada impede você de criar um sistema filosófico e chamar de «vontade» a mesma coisa que São Tomás chamava de «apetite irascível». Agora, se você vai dizer que segundo São Tomás «o amor é um ato da vontade», então segundo São Tomás o amor não é um ato do apetite irascível. E recusar essas precisões como se fossem meros detalhes é muito contrário ao espírito do projeto de São Tomás.)
Ou seja: toda a espiritualidade masoquista que diz que o amor — e o amor num sentido elevado e espiritual — consiste em você viver contrariado, fazendo o que não quer… Bem, lamento informar, mas isso não tem nada a ver com São Tomás de Aquino.
Para São Tomás, a vontade é o «apetite intelectivo». É uma espécie de capacidade de querer e de buscar o Bem com B maiúsculo. O «amor» em São Tomás é um ato dessa capacidade — ou, para continuar sendo preciso, dessa «faculdade (ou potência) da alma».
Assim, quando você é capaz de se relacionar com as pessoas e com o mundo segundo o seu melhor, segundo o Bem que há neles, aí sim, segundo São Tomás — e fico aberto às correções de tomistas! — você está «amando».
Exemplo bíblico: Pedro é um cara impetuoso, mas meio fogo de palha. É um líder nato, mas infiel. Diz que vai pescar e os apóstolos vão pescar. Reconhece Cristo como messias, mas logo diz que não vai permitir a crucifixão. E no entanto Cristo pega Pedro no seu melhor — no seu reconhecimento do messias — e faz dele o chefe da Igreja. Pronto: agora Pedro tem de viver segundo essa promessa.
Uns diriam até que essa é uma técnica de liderança. Se eu fosse capaz de gerenciar uma padaria, talvez pudesse corroborar. De todo modo, este é um sentido do «amor» no sentido de São Tomás: percebendo qual é o maior bem que há naquela pessoa, querer que ela viva segundo esse bem.
Ao dizer isso, não estou negando a importância do apetite irascível. Ele pode e deve, idealmente, ser movido pelo amor, mas o ato do amor está na vontade, não nele. Se eu cuido de um doente por amor, é porque enxergo o bem do doente, e espero que ele possa voltar a viver segundo esse bem.
E se eu falo de «masoquismo», é justamente porque, ao colocar aquilo que é «árduo» na frente do bem, estou pondo o obstáculo na frente do objeto. Nenhum treinador esportivo que fique repetindo que no pain, no gain de fato acredita que o objetivo do exercício é a dor — a dor não é nem sequer um meio, mas um acidente de percurso.
O discurso que enfatiza a dor e o sofrimento felizmente é só da boca para fora. As pessoas adoram falar da «nobreza do sofrimento» entre uma foto e outra de um momento feliz. Uma comida boa, uma taça de vinho, um encontro de amigos, crianças brincando, cachorros fazendo a maior zona. No meio, esse papo masoquista que foi introjetado graças a uma chantagem emocional.
Imagine você se casar com alguém pensando que o amor é um ato do apetite irascível, como se você desde a solteirice já pensasse, como um guerreiro heroico, que o casamento é não a companhia de alguém de quem você gosta, mas «algo árduo que pertence à ordem sensível».
Eu mesmo teria me recusado terminantemente. Nunca quis ser a dieta (muito menos a cruz) de ninguém.