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070 Sobre a «beleza»

O primeiro de dois ideais que não podem ser buscados diretamente

Duas vezes, na semana passada, chegaram-me pelo Instagram conteúdos a respeito do «amadurecimento» que me fizeram pensar ainda outra vez: será que o amadurecimento, assim como a beleza, não se tornou um ídolo pagão, isto é, um ideal que paralisa mentalmente as pessoas — ao mesmo tempo em que abre sua carteira?

Digo isso porque, ainda adolescente, comecei a ler muita poesia. Os poemas eram bonitos. E rapidamente percebi que a beleza dos poemas não era algo que tinha sido buscado em si, mas era uma decorrência de certos procedimentos. A beleza estava lá, mas como um efeito. Me pergunto se com o amadurecimento não acontece a mesma coisa: a pessoa que tem certas capacidades pode ser vista como «madura», mas a maturidade, assim como a beleza, não pode ser buscada diretamente.

Quem estudar a beleza verá que ela é produzida de maneiras diferentes. O que seria, nas artes visuais, uma beleza «clássica»? Uma resposta estaria na presença da harmonia. Como a harmonia é buscada? Por exemplo, por meio da simetria.

(E ponho entre aspas porque sim, há outros tipos de beleza. Não podemos dizer que os rostos angulosos tão na moda hoje em dia têm algo de… gótico ou românico?)

Um quadro com uma beleza «clássica» terá seu tema no centro e o mesmo número de figuras dos dois lados, equilibrando-se. Mas será realmente belo se, além de seguir um monte dessas regras, também acrescentar um misterioso «algo a mais», que pode vir de uma certa ironia (o que é o sorriso da Mona Lisa?) ou da execução excelente de todos os elementos distintos — aquela história de que o todo é maior do que a soma das partes. A própria palavra arte vem do grego areté e significa isso mesmo: excelência, virtude, superação. Aliás, é famosa a citação em que Werner Jaeger associa areté e aristos, raiz que nos deu a «aristocracia», ou o «governo dos melhores».

A qualidade que almejo em meus textos também tem algo de «clássico»: quero que sejam «claros e simples como a verdade», clear and simple as the truth, como se houvesse no que digo uma verdade simples e enfim inegável. E claro que você pode negar essa verdade, pode achar que eu só falo bobagem, mas eu conscientemente busco um estilo o mais claro possível. A clareza na escrita pode ser buscada. Já a beleza, não. Ela vem da clareza.

Outra qualidade que leva à beleza é aquilo que desde pelo menos o século XVI os italianos chamam de sprezzatura, e que os interessados em moda neste mundo tão anglófilo conhecem como effortlesness: a aparência de que você faz as coisas com facilidade, de que a unidade do seu gesto, do seu vestir, da sua aparência, da sua escrita, não tem nada de calculado. Como se aquilo tudo fosse natural. É por isso, também, que vemos as pessoas dizendo que as pessoas belas são «mais elas mesmas», que elas têm uma «presença» mais forte. (Notou a conexão com a clareza, aliás?)

Você tem a impressão de sprezzatura (a própria palavra, pronunciada spretzatúra, é muito mais natural do que effortlesness) se acredita que escrevi este texto de uma vez só, sem revisões, que o texto contém uma unidade inegável, que nele não há nada a mais nem nada a menos, que nele não há nada que precise ser modificado. Porém, creio que, para a maioria, a sprezzatura fique mais evidente nos esportes, e que, em parte, seja ela que o público deseja admirar quando assiste aos grandes eventos esportivos: pessoas executando movimentos extraordinários com graça e facilidade.

Também é a sprezzatura do mestre que humilha o iniciante. Se você tenta tocar piano, logo depois da sua primeira aula você terá uma noção muito maior do que é a arte de um Claudio Arrau. Na sua primeira aula de dança, você perceberá o que faz um Baryshnikov.

Nada disso pode ser buscado diretamente. Na minha adolescência, todo mundo lia um livro: A arte cavalheiresca do arqueiro zen. O famoso arqueiro zen era um alemão que praticava o tiro com arco e flecha, e seu mestre dizia que não era o atirador que atirava, mas que «algo» atirava. Concentre-se em manter um certo estado de espírito, preste atenção nos movimentos, que de fato será como se «algo» atirasse.

Ainda hoje, as meninas que estão preocupadas com a beleza têm grande consciência disso. São «arqueiras zen» sem saber. Só alguém que acaba de chegar pensa que a beleza pode ser buscada diretamente. Toda mulher sabe que não é a Gisele Bündchen, e que isso não significa nada: toda mulher pode ressaltar certas qualidades, buscar um tipo que corresponde melhor à sua personalidade e ao seu corpo, e, ao tornar sua presença mais clara, mais evidente, torná-la, por consequência, também mais bela.

Uma moça que simplesmente queira ficar «igual à Gisele» sem ter lá grande coisa em comum com ela vai acabar caindo naquela modalidade de kitsch que é a imitação da beleza. O resultado vai ser confuso. Vamos perceber que ela se esforçou, mas não necessariamente captaremos o resultado ou discerniremos sua intenção. (E claro que se eu tentasse parecer o He-Man, ficaria igual a ela.)

No mundo do texto, um belo exemplo desse kitsch de imitação da beleza é o hino nacional. Em ordem direta, «as margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico» parece ter apenas o excesso de adjetivos de uma tradicional penteadeira de velha; agora, ao escrever «ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante», Osório Duque-Estrada parecia estar inventando o barroco tarja preta.

Sem gracinhas, a ordem indireta cria uma ambiguidade real. Eu mesmo pensava, até os quinze anos, que havia uma crase no «as» e que, portanto, algum grupo de pessoas («eles», oculto) tinha ouvido o brado retumbante enquanto estava «às margens plácidas» do rio Ipiranga.

Na tentativa de «falar bonito», porque a beleza foi posta como ideal paralisante, Duque-Estrada perdeu a naturalidade. É evidente que ele estava fazendo força. Tascou uma perucona loura e achou que tinha ficado igual à Gisele.

Não estou bancando o brasileirinho bom demais para o Brasil. Estou apontando uma ambiguidade real na letra do nosso hino. Um hino é cantado. Se eu só posso desfazer a ambiguidade ao ler a letra oficial do hino, e uma ambiguidade que está na sua primeira oração, posso dizer: se o letrista Osório Duque-Estrada tivesse buscado a clareza em vez da «beleza», teria produzido um texto mais belo.

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Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara