073 Gostar de algo muito brasileiro
Espero que a língua portuguesa esteja passando bem daqui a 200 anos
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Nunca entendi bem a ideia de ter «orgulho» do Brasil. Certamente não por eu ter alguma coisa contra o Brasil. É que não consigo entender qual o sentido de orgulhar-se da Amazônia, da praia de Copacabana, do samba-canção, do bobó de camarão, ou das «tragédias cariocas» de Nelson Rodrigues. As maravilhas do Brasil não são matéria de orgulho, mas de admiração, de espanto, e de algo que não é suficientemente levado a sério: o gosto.
Estou dizendo isso porque o orgulho sempre traz a competitividade, e a competitividade traz tristeza. Se eu falar da pujança de São Paulo, rapidamente me lembrarei de Nova York. E, se eu for para Nova York, começarei a achar defeitos em Nova York. Porque, afinal, Londres. Porque, afinal, Paris. Porque essas metrópoles são sempre sujas, barulhentas, agitadas. E se eu fizer questão de «ganhar», ainda mais na base do orgulho, vou cair na conspiração, isso se não partir para uma ingenuidade agressiva: o Rio é que é melhor mesmo! É sim! Porque tem tais e tais qualidades intangíveis que só os puros de coração percebem!
O que é muito mais firme é você saber do que você gosta.
Quando você sabe do que você gosta, você pode estar em qualquer lugar.
Eu mesmo admito sem problemas que, por esse critério, o Brasil não é o lugar de que mais gosto. Todo dia eu gostaria de caminhar do AirBnb em que vivi em Buenos Aires, na rua Pedro de Castillo (ou apenas Castillo), até a Plaza Armenia. Todo dia. Estamos tendo uma noite mais quente no Rio agora, e eu já teria ido com minha esposa e minha cachorra na direção oposta à da Plaza Armenia, até a honesta sorveteria Daniel. Também preferiria que levássemos a cachorra para passear no parque de Buttes-Chaumont, em Paris, e sonho com o dia em que vamos andar pela Avenue Simon Bolivar até o ponto em que ela vira a Rue des Pyrenées.
Porém, existe uma coisa do Brasil, uma coisa fundamental, que deve ser a coisa de que mais gosto, a coisa que mais cultivei. Não é algo que de que me «orgulho». Foi algo que me foi dado ao nascer: a língua portuguesa.
Não preciso encontrar aquele pontinho que prova uma suposta superioridade da língua portuguesa. Não preciso enaltecê-la nem louvá-la. Não preciso me orgulhar dela. Estou contente.
Tenho uma lembrança muito marcada: nas primeiras viagens internacionais, estar no portão do aeroporto, esperando o voo de volta, tinha algo de borocoxô. Era o fim de uma aventura. Restava apenas acordar (se bem que nunca durmo em aviões) no dia seguinte para a banalidade de sempre, que me aguardava em Copacabana. Porém, em poucas viagens comecei a notar que sentia um grande prazer ao chegar a esses portões de embarque em terras estrangeiras: enfim, todo mundo estava falando português.
Isso não significa, é claro, que outras línguas também não estão em mim. Quase todo o dinheiro que ganhei na vida adulta veio da tradução de livros. Ter uma intimidade acima da média com dois idiomas estrangeiros é um osso do ofício, ainda que essa intimidade tenha sido conquistada pelo desejo de entender melhor a poesia (no caso do inglês) e a ficção (no caso do francês).
Mesmo assim, mesmo com partes da mente formatadas em outros idiomas, como se eu fosse um ridículo aristocrata russo dos romances de Dostoiévski, há um nível profundo de intimidade que só existe em português. Há uma segurança que só existe em português. Um chão. Os linguistas até acrescentariam: aprendizado, tecnicamente falando, vem depois de uma certa idade. Até uns sete, oito anos, você adquire um idioma.
Idioma esse que, como falei, me foi dado. Não precisei fazer curso. Não precisei destrinchar livros.
E insisto que «gostar do português» não tem nada a ver com orgulho. Se gosto de palavras, se gosto de expressões, de um jeito de falar, cultivo esse gosto aprendendo mais, me exercitando mais. Por isso, ainda repito: não preciso ficar procurando algo que é específico, único, diferente, e ao mesmo tempo superior aos outros. Eu já tenho algo que é específico, único, e diferente: meu corpo, que adquiriu, que ganhou esta língua de graça.
Digo isso e me vejo até diante da tentação de dizer que, se existe algo que o nosso português brasileiro expressa bem, é justamente a intimidade. Preparar um cafezinho para alguém tem alguma conotação que não parece existir em faire un petit café. Até mesmo quando um brasileiro se vê diante daquilo que é sagrado e solene ele quer sentir que está... um pouquinho mais perto.
Também não quero pensar em termos de «minha pátria é minha língua», como Fernando Pessoa. «Pátria» é uma noção política, e essa noção política tem muito a ver com o nacionalismo do século XVIII, aquele que os incautos julgam existir desde antes de a Bíblia ser escrita. Como se as nações modernas existissem metafisicamente, desde antes da criação do mundo.
O nacionalismo é uma forma de orgulho, e o orgulho termina inevitavelmente na bipolaridade. Se você se orgulha do atual presidente da república, também se orgulhará do próximo? Ou vai cair em depressão? Se tem orgulho dos jatos da Embraer, o que fará se ela fechar? Se você precisa se orgulhar do número de falantes do português (não apenas brasileiro), como não vai se deprimir com sua importância desproporcionalmente pequena, medida pelo número de pessoas que o adotam como segunda língua?
Se o medo é mau conselheiro, o orgulho é pior ainda. Muito pior.
Penso até em Joaquim Nabuco. Num trecho famoso de Minha formação, ele fala de como seus sentimentos estão todos no Brasil, onde nasceu e cresceu, mas seu intelecto está todo na Europa, por causa dos livros que leu. Mais de um século depois, a história da literatura — incluindo a ensaística — brasileira já é grande o bastante para que você possa gostar de muitos autores brasileiros e admirá-los. Ainda não é possível, é verdade, viver só dos livros que são publicados em português. Mas quanto conquistamos desde os tempos de Nabuco!
A língua é aquilo que une o nosso corpo à cultura. Conseguir expressar cada vez mais coisas em português é tapar aquela lacuna que havia na alma de Joaquim Nabuco. E tenho uma vaga suspeita de que, se levássemos mais a sério o que já temos e podemos cultivar, essa entidade cultural que denominamos «Brasil» e que somos nós mesmos cresceria muito mais — e nem mesmo por consequência, mas no mesmo ato.
Grande Pedro! ótimo texto e ótimo exemplo. Abração.