1 Jesus evita encarar a multidão
Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para baixo, escrevia com o dedo na terra. (João 8, 6)
Talvez o «inclinando-se» já bastasse para transmitir o que está em jogo, mas ainda assim acrescentei o «para baixo», que está no texto grego («κάτω κύψας»), só para garantir a ênfase.
O Evangelho de João faz questão de deixar claro: ao ser tentado diante de uma multidão que pretendia — dentro da lei — apedrejar uma adúltera, Cristo não olhou a multidão nos olhos. Inclinou-se para baixo e, como sabemos, traçou uma linha no chão.
Cristo fez exatamente o contrário do que gostamos de fazer na internet, que é provocar a multidão. Dizer: seus burros. Mas vocês aí. Mas essa gente.
Não se trata de ter razão. No caso, a multidão «tinha razão»: a mulher era mesmo adúltera, o que não foi negado nem por ela mesma, e estava dentro da lei. Cristo também tinha razão ao perguntar quem ali não tinha pecado e podia apedrejar uma mulher.
Porém, Cristo fez essa pergunta de cabeça baixa, sem encarar a multidão, como Brueghel retratou no quadro Cristo e a mulher apanhada em adultério — sendo mais fidedigno aqui do que Rembrandt em seu quadro com o mesmo tema.
Encarar a multidão é duelar com a multidão. E imagine só: a multidão vencerá. Se você se revoltar contra a multidão, ela verá refletida, nos seus olhos, a revolta dela. A sua revolta e a revolta dela vão se retroalimentar.
Agora, os Evangelhos contam que Jesus já tinha escapado de alguns linchamentos, então talvez houvesse aí até uma sabedoria prática, porque «ainda não era chegada sua hora». Mas, na internet, desde o meu computador, posso enfrentar todas as multidões, e elas podem me linchar, sem que ninguém se machuque fisicamente. O efeito desse enfrentamento não seria a morte física, mas a minha transformação em homem-contra-a-multidão — e, ao duelar contra a multidão, passo a ser como ela.
O cavaleiro solitário passa a frequentar aqueles programas em que pode condenar a multidão. Os escribas e fariseus do momento não perguntam «mas e essa adúltera, podemos apedrejá-la?», mas sim «e essa multidão apedrejadora, não podemos apedrejá-la?». «Veja, mestre, aqui temos alguém que foi pego defendendo a ideologia de gênero.»