Foi em meados de 2002 que comecei a sair de uma espécie de delírio conspiratório em que eu imaginava que misteriosas forças lovecraftianas de esquerda tomariam o poder no Brasil, destruiriam as conquistas do Plano Real, e piorariam a minha vida — a minha vida — significativamente. Uma espécie de Cthulhu ideológico com o qual eu sonhava.
Mas tanto comecei a sair do delírio que fiz planos para o futuro: decidi fazer, já com 25 anos, a graduação em grego antigo na UFRJ. Comecei pouco depois que Lula assumiu o poder, enquanto me perguntava o que antigos colegas que efetivamente esperavam a revolução comunista ou ao menos alguma perseguição real estariam pensando. Nada aconteceu.
Durante os anos em que o PT esteve no poder, me formei, fiz mestrado, entrei no doutorado, namorei, casei. Traduzi dezenas de livros. Cogitei ser intérprete de conferências. Desisti. Uma vida bem normal.
Sim, em muitos ambientes que frequentei minhas posições contra a legalização do aborto e a favor da privatização total de tudo eram malvistas. Sim, ao menos um professor e um aluno da UFRJ me trataram, digamos, com estranheza. Ri na cara deles. Nada aconteceu.
Em 2018, vi em muita gente de esquerda o mesmo comportamento dos antigos direitistas que esperavam a chegada de Lulalênin. Como não esquecer da onda de avatares de «desaparecido» no Facebook? Da insinuação de que o voto em Bolsonaro era equivalente a espancar um travesti na rua? Era como se Hitler tivesse voltado. Pessoas inteligentes me diziam: «Sinto que estamos de volta à década de 1930.»
E até, durante a pandemia, e ainda hoje, como levar a sério o rótulo de «genocida»? Se eu realmente acreditasse que o presidente do meu país é um genocida, eu faria parte de uma milícia armada para tirá-lo. A ideia de retirar um genocida do poder pelo voto democrático…
Este é o ponto do texto em que o leitor pode esperar que eu vá me colocar acima dos dois lados e começar a falar da vacuidade do discurso público. Eu, curado de um delírio vinte anos atrás, agora voltaria para acusar as massas delirantes.
Não sei com qual sentimento contrario essa expectativa, mas espero que seja o de uma certa compaixão. Porque, afinal, se eu sei o que é ter uma imaginação conspiratória, como poderia acusar alguém? Estou mais para um viciado em perpétua recuperação.
Aliás, as pessoas que esperavam as perseguições de Lulalênin eram médicos, engenheiros… Gente que pagava suas contas, que tinha uma boa vida de classe média. Gente muito mais realizada do que eu, do ponto de vista material. E o mesmo vale para os delirantes antibolsonaristas, para os quais o nome do presidente é um escândalo bíblico — o gatilho para que elas se lembrem que, quando não estão normais, estão petrificadas por essa Medusa, e digam, enquanto curtem o pôr do sol no Arpoador, que «o Brasil vive tempos sinistros».
Se é inevitável tirar uma lição, é esta: qualquer pessoa pode entrar num delírio coletivo e continuar sendo uma boa pessoa. Deduzir que o petista ou o bolsonarista tem sérios problemas morais e cognitivos é apenas dar um mais um passo para dentro desse delírio conspiratório.
Apenas buscando na memória, me parece que era disso que Eugène Ionesco falava na famosa peça O rinoceronte, em que as pessoas de uma cidade misteriosamente se transformam em rinocerontes. Virar rinoceronte significa ser contagiado por um grande delírio coletivo. Nada impede que você também seja contagiado.
Também me parece que é esse tipo de coisa que está por trás da tragédia grega. Quem promete resolver todos os problemas será fatalmente visto como o grande culpado. É o que Édipo diz na fala de abertura da tragédia de Sófocles: ele vai resolver os problemas de Tebas. Quem diz que odeia o Mal mais do que tudo terá todo o ódio dirigido contra si. Não foi isso que houve com o PT, não foi isso que houve com Bolsonaro?
Antes de terminar, preciso dizer duas coisas. A primeira é que eu mesmo não me tornei um Buda da lucidez após reconhecer meus delírios. Durante a pandemia, um amigo colecionador de canetas-tinteiro me mandou fotos de uma peça muito rara que ele tinha — uma Platinum 3776 ReCelluloid Cha Ringu. Sick with desire, como no poema de Yeats, entrei no eBay e, por acaso descobri, a um preço que me pareceu irrisório, uma irmã daquela preciosidade. Quando a caneta enfim chegou, percebi que aquela compra não tinha passado de um sonho de uma noite de verão.
Por isso, sabendo que não sou imune a delírios, não me escandalizarei se você estiver esperando o comunismo venezuelano ou o genocídio dos travestis. E sei muito bem que uma coisa é uma caneta, e outra coisa é a política — na verdade, acho que a indignação moral associada à política facilita e muito o delírio.
A segunda coisa é consequência da primeira. Se você realmente acredita que o Brasil «vai virar a Venezuela», por que não está com a passagem comprada para o Paraguai, para a Argentina? É Mercosul. Basicamente, é só chegar. Em Buenos Aires, você vai lá na Dirección Nacional de Migraciones e resolve. E se você realmente espera nada menos do que… um genocídio, por que ainda está aqui?