078 Meu pecado é não esconder nada
Falsas equivalências? Para Shakespeare, verdadeiras equivalências
«Fulano fez X, mas Beltrano fez Y.»
«Peraí, você não pode comparar, isso é uma falsa equivalência.»
É quando ouço isso do meu interlocutor que me sinto diante de um veneziano d’O mercador de Veneza, que sempre me pareceu a mais brasileira das peças de Shakespeare. Uma peça que que mostra que, se você é cool, você pode tudo; se não é, recolha-se à sua insignificância — e não venha com falsas equivalências.
Sim, eu sei, a peça costuma ser associada ao antissemitismo, e basta citar seu título para que ela vá para o banco dos réus por ter o judeu Shylock, usurário dos mais clichês, como vilão.
(Usurário: aquele que empresta dinheiro a juros.)
O problema, ali, é que Shakespeare está justamente dizendo que os mocinhos da peça são tão dinheiristas quanto Shylock, tão venais quanto ele; o pecado de Shylock não é ser um judeu usurário, mas sim ser mais grosseirão, falar o que não deve ser falado entre pessoas elegantes, e ainda por cima querer devolver também com usura o mal que lhe fazem.
E algum de nós não se vinga com juros? Quem deixa de responder um soco com dois socos?
Vamos ao texto. Ato 1, cena 1. Antonio é o rico mercador de Veneza do título. Está triste, emburrado. Por quê?, perguntam. É a falta de notícia dos seus navios, cheios de mercadorias? Não, diz Antonio. Absurdo. E eu lá sou homem de pôr toda a minha fortuna em poucas empreitadas? Ou de contar apenas com os rendimentos de um ano? Minha fortuna está é muito segura, vejam bem.
Saem os enxeridos. Entra Bassanio, seu amigo íntimo, trazendo verdades: Antonio, meu querido (eu não resistiria a tascar esse «meu querido» na fala de Bassanio), sei que te devo muito, mas vim pedir mais um pouco emprestado, porque agora vai: descobri uma mulher podre de rica em Belmont, só preciso da grana para chegar lá.
E Antonio: excelente, meu querido, excelente, mas só tem um detalhe: eu estou sem um tostão para você fazer a sua viagem. Mas faça o seguinte: use o meu nome na praça e arrume um crédito, que depois a gente vê.
De cara temos a primeira duplicidade: na frente de todo mundo, Antonio está muito bem. Com o amigo íntimo, confessa estar na pior.
A segunda duplicidade: Bassanio quer dar o golpe do baú. Sim, ele diz que a senhorita em questão é bela e virtuosa; mas, antes de tudo, é rica. O público, simpático aos simpáticos venezianos, registra a riqueza da donzela como um acessório bem vindo, o famoso plus a mais criado pelos brasileiros.
O público fica tão enfeitiçado que até me lembro de ter tido em aula a uma professora: mas Bassanio quer dar o golpe do baú. Ela ficou chocada. Como eu poderia fazer essas insinuações a respeito de um rapaz tão bonito, tão elegante…? Não, ele jamais faria uma coisa dessas!
Restou-me apenas pensar: de fato, quem é cool pode tudo. Pintou um clima, mais que demais.
E segue o enredo: dois amigos na pior, contando com o golpe do baú. Quem vai ajudá-los? O judeu Shylock, que, por sua vez, não tem a menor pretensão à elegância, não faz a menor pose, e é bastante franco: o negócio dele é dinheiro mesmo.
Shylock é tão caricatural que nem faz sentido falar de «antissemitismo». Ele é um contraste com os venezianos elegantes, que não vão confessar em público sua falência iminente, nem admitir que alguma coisa vai mal. Além disso, Shylock diz que empresta dinheiro a juros, para lucrar mesmo; Antonio é que vilipendia o ofício, emprestando na amizade.
É nobre emprestar na amizade, admito. Mas talvez só até o momento em que você e seu amigo contam com o golpe do baú.
Agora, Shylock, que sempre foi cuspido, que sempre foi maltratado, enxerga a oportunidade de obter também sua vingancinha. Como garantia do empréstimo para a viagem do golpe, ele pede como garantia uma libra (453 gramas) de carne de Antonio.
Péssimo, Shylock. Agora você está igual ao homem do subsolo que apareceu séculos depois, que se convidou para um jantar e espera ditar os rumos da conversa. Você não percebeu que já era igual aos elegantes venezianos, eles nunca cogitaram isso, e o público mesmo precisa de muito mais do que um empurrãozinho para enxergar o que Shakespeare pôs diante dos seus olhos. Tanto que, até hoje, temos doutos tratados sobre o antissemitismo na peça e tudo o mais. Mais que demais. Depois que pinta um clima entre público e personagens, ninguém é de ninguém.
Acho que Shakespeare nunca foi tão malicioso quanto nessa peça. Seus versos mais sublimes estão na fala em que Portia, a feliz dona do baú, se disfarça de jovem adevogado de Pádua e tenta convencer o irredutível Shylock a contentar-se com um pagamento monetário. Mas não, cuspiram em mim, assinaram o contrato, eu quero a minha libra de carne! E ela: the quality of mercy is not strain’d, / it droppeth like the gentle rain from heaven / upon the place beneath…
Portia, vestida de homem — um ator homem fazendo papel de mulher que finge ser homem, a coisa mais comum no palco elisabetano —, fingindo ser um jovem adevogado, diz as palavras mais sublimes. Mais ou menos como se eu entrasse no tribunal usando salto alto e uma peruca loura e convencesse o júri a ler O segundo sexo antes de dar o veredito. E ainda me aplaudissem: Sublime! Comovente!
O mercador de Veneza me faz pensar em Milan Kundera, que escreveu em algum lugar que o sonho do ficcionista é desaparecer completamente atrás de suas ficções. Com personagens e público num nível veneziano, e o risco de virar um Shylock a qualquer momento… Se bem que nem preciso de Kundera: o próprio Shakespeare preferiu disfarçar essas equivalências, para que ele mesmo não fosse visto como um Shylock.