Compro pela Estante Virtual a bela edição da Pléiade do Diário de um escritor, de Dostoiévski. Novinha. Parece que nem foi manuseada. A R$120, um grande negócio. Logo no começo, me deparo com uma crítica de Dostoiévski a um de meus heróis, Alexander Herzen. Herzen «nunca tinha tido contato com o povo».
Dostoiévski, de fato, era filho de um médico, e Herzen, filho de um riquíssimo proprietário de terras. Dostoiévski foi preso e mandado para os trabalhos forçados. Herzen, outro subversivo, foi preso, mas foi apenas exilado para o interior da própria Rússia, proibido de ir a Moscou e a São Petersburgo, e passava os dias nos cafundós escrevendo freneticamente cartas de amor para a futura esposa, enquanto namorava outra (e, bem, não é por isso que ele é um dos meus heróis; leiam suas memórias, My Past and Thoughts em inglês, Passé et méditations em francês).
Dostoiévski passou, ao longo da vida inteira, uma semana em Londres, em 1862 (o mesmo ano em que Turguêniev publicou Pais e filhos). Visitou Herzen, que tinha emigrado definitivamente, e àquela altura já vivera em Veneza e em Paris. Herzen era o grande responsável pela propaganda revolucionária, sendo citado várias vezes em Demônios, de Dostoiévski. Há quem diga que o inesquecível Stiepan Trofímovitch é inspirado em Herzen, o que me parece uma bobagem; o personagem é uma mistura de diversos «homens supérfluos» da Rússia, e Herzen, justamente por ter emigrado, não foi supérfluo. Passou a vida em plena atividade, e não vendo a vida passar.
Esta, porém, é outra conversa — que tanto me interessa que vou trazê-la para as próximas edições pagas da newsletter, enfim concluindo o que comecei a escrever cinco anos atrás: a experiência espiritual da nova direita recapitula a experiência da Rússia pré-revolucionária.
O que eu ia dizer aqui é que, primeiro, ri de mim mesmo após pagar R$ 120 para ler Dostoiévski me dizer em francês, numa luxuosa edição Pléiade, com papel mais bíblico do que a Bíblia, que é preciso ter contato com o povo.
Mas então me ocorreu: existe o povo? Digo, ainda? O povo não era algo que existia talvez até o século XIX?