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O curso já foi enriquecido com mais aulas, ainda ganhará novas aulas, e também encontros pelo Zoom. Mais informações sobre o curso estão neste post no Instagram.
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…para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas,
seu deserto particular,ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.
— Alberto da Cunha Melo, «Casa vazia»
Na buena, se algo me chamou a atenção nas reações à última essetefada, foi o seguinte: eu, que sou também sou contra — uma das minhas últimas credenciais direitistas —, não vi nenhum texto sobre o tema que parecesse, assim, vagamente, pretender… convencer o outro lado.
Pergunto-me até que ponto nos acostumamos a querer escrever apenas para sermos admirados por pessoas que já concordam conosco. (Talvez eu precise inventar um personagem, meu sobrinho «jovem», que me advirta que isso é a «lacração».)
Muitas vezes me parece que já abandonamos há tanto tempo a pretensão de falar com (notem que agora eu nem disse «para») o outro lado que nem lembramos dela. Estamos precisando dar uma limpada no vidro da nossa bolha.
Prova disso é o seguinte: em vez de argumentar, diagnosticamos. Fulano não percebe porque lhe falta Deus, uma determinada experiência, uma qualidade na alma. Cada texto acaba virando algo como «Por que é belo e moral condenar aquelas pessoas que não veem o mundo como eu vejo».
Penso em Santo Anselmo, que dormia mal e ficava perturbado em suas orações porque queria encontrar um argumento que convencesse os ateus da existência de Deus. Não encontrou (era para ser o argumento ontológico, «o ser perfeito necessariamente existe», detonado por São Tomás logo na segunda questão da Suma Teológica), mas sua fé no «outro lado» podia nos servir de exemplo. Anselmo acreditava nos discordantes. Mesmo.
Penso ainda nas famosas discussões medievais entre cristãos e muçulmanos. Penso em Bento XVI em Ratisbona, defendendo a razão como terreno comum da humanidade.
«Mas, Pedro», dirá você, «num tema como esse do STF não podemos transigir! É um absurdo!»
Só pode transigir quem tem poder para alterar alguma situação. Eu, mero paisano privado, nem transijo, nem não transijo. Aqui estou no debate público, que pode chegar aos ouvidos de alguém — uma ministra — que pode transigir ou não transigir.
Apenas me ocorre é que, se existe a pretensão de debate, assim como me chamarem de fássista e ovo da serpente nunca abrandou meu coração para ouvir argumentos (quanto mais «exigências»), também chamar os outros de assassinos não deve lá surtir bom efeito. Ao menos eu diria que não é uma estratégia para atrair a benevolência do interlocutor. Para falar internetês, agora advertido, a lacração é um epic fail da retórica.
Ainda me pergunto: se você crê saber uma verdade universal, por que não tentaria fazer com que ela tivesse alcance universal? Por que não tentar ficar à altura dessa tarefa, em vez de… condenar o próprio público? Só porque ninguém deu atenção ao seu chilique internético você já quer bater o pó das sandálias como um apóstolo rejeitado?
Nos dois últimos cursos que dei, me esforcei muito para tentar ver as coisas desde o «outro lado». Convidei os alunos a esse exercício, que leva a algo mais do que «ter razão» ou «ganhar a discussão».
Ele expressa o desejo de ser universal. É um desejo primeiro dos pagãos gregos e romanos, com seu estilo que hoje denominamos clássico. É um desejo dos católicos, porque a palavra katholikon quer dizer precisamente «universal». É um desejo, que pode ser louco — ou pode nos levar a conhecer o público, ao menos a imaginá-lo.
Agora, até aqui, é verdade, pensei nos aspectos retóricos de um debate. Um dos maiores problemas dessa questão específica, dessa última questão essetê-éfica, é que, se você diz que é homicídio, então segue-se que… E se você diz que é uma questão de saúde pública, então segue-se que…
Ou seja: a rigor, não há debate. O debate teria de partir da mesma formulação. Pergunta: é homicídio? Sim? Por quê? Não? Por quê? Ou é um problema de saúde pública? Etc.
Interessante é que foi uma pessoa do «outro lado», do lado de que discordo, que abriu o flanco para que a questão fosse discutida como homicídio. Lygia Maria, na Folha de São Paulo, diz que não é, e ainda pergunta: se fosse, onde está a comoção pela fertilização in vitro?
Claro, talvez ela ignore que muitos cristãos opõem-se ao pacote completo, e a qualquer coisa que envolva a manipulação de embriões incluindo a pesquisa em células-tronco retiradas deles.
Mas até que ponto ela ignora isso justamente por que, há tempo demais, já nos acostumamos a nem cogitar argumentar para o outro lado, a apenas pregar para as dobras das nossas túnicas no nosso «deserto particular», contentando-nos em dizer, na parte que propositalmente omiti do poema que está na epígrafe, que «escrevemos cada vez mais / para um mundo cada vez menos», como se o problema necessariamente estivesse… no mundo?
E, se me permitem uma pergunta final, quem será mesmo que paga por essa omissão de tentar falar com o outro lado? Quem exatamente está pagando por abandonarmos o universalismo em nome do orgulho de nos acharmos a pedra no sapato do mundo?