Esta newsletter não é apenas um comercial do curso Ler com clareza, que está à venda a partir de agora. Como sempre, é um texto que tem interesse por si próprio.
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Vivemos na era do making-of e do reality show. Talvez eu tivesse mais popularidade se mostrasse meu dia-a-dia; porém, meus dias são sempre muito parecidos. É o mesmo escritório, a mesma vista, e, nesta quaresminha de Advento, a mesma Pelikan M805 preta com a mesma tinta preta, Graf von Faber-Castell Carbon Black. Apenas sinto que a tinta preta veio para ficar até depois do Natal.
Porque, como falei no meu novo canal no Instagram, intitulado «Confissões», algo sucedeu comigo. Durante o mês de novembro, fiz altos planos para a newsletter, sentei para escrever — e não me faltam instrumentos de escrita —, e toda vez tive uma crise de ansiedade. Decidi abandonar temporariamente o projeto (seria um longo ensaio, em partes, exclusivo para assinantes, a respeito do grande tema das duas Oficinas de Escrita: «A cara da verdade») e me dedicar a outros planos, enquanto me examinava. Daí, até, a caneta preta com tinta preta. Sobriedade. Baixar o volume da minha própria cabeça. Dar um passo para trás para, se Deus quiser, dar muito mais do que dois para a frente.
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Por isso, até, mesmo com aulas a serem gravadas para outros cursos em andamento, finalmente organizei um curso que sempre quis dar. Inicialmente pensei em dar-lhe o nome «Do mito ao Logos», mas ele me parece perigosamente próximo da penteadeira de velha metafísica. Daí optei pelo nome mais simples de «Ler com clareza», embora o curso tenha um forte conteúdo religioso.
A motivação do curso começou simples: vejo muitas pessoas, pessoas inteligentes, talentosas, que tentam interpretar textos estranhos como se fossem alegorias ou símbolos. As duas palavras, aliás, não são sinônimos. Uma alegoria tem como referência algo que está no mundo da experiência humana. Um símbolo aponta para algo maior do que a experiência humana. Platão escreveu a famosa «alegoria da caverna», que fala, entre outros, de como os prisioneiros da caverna recusam o saber exterior. É uma alegoria que pode ser dolorosamente vivida; você pode com certa facilidade descobrir exatamente a que ela se refere. Por outro lado, no caso do símbolo, é difícil circunscrever o objeto a que o símbolo se refere, porque ele parece maior do que a nossa imaginação. Assim, o Sol no céu seria um símbolo da bondade divina; a luz, da inteligência divina; a Lua, da mutabilidade de tudo. Mais importante, este mundo seria o símbolo de outro.
(E agora, um comercial: tenho uma aula de vinte minutos para a alegoria, outra para o símbolo, e a parte dos mitos vai ficar maior ainda — vou subir as aulas agora à tarde.)
Não posso culpar aquelas pessoas por interpretar como alegorias ou como símbolos textos que pareçam estranhos. Você pega um texto estranho como 1984, de George Orwell. Do que ele está falando? Eu acho que ele refere o empobrecimento da experiência. Entender um texto literário em parte significa entender a que ele se refere, do que ele está falando, ou responder à pergunta: ele é uma alegoria do quê? Por mais que eu admire a própria estrutura de um texto difícil como Dom Casmurro, ele fica muito mais inteligível se eu sei o que é o ciúme (no sentido de que o ciúme é a dúvida a respeito da infidelidade, não a raiva que vem da certeza).
Mas você pode também pegar uma história estranha como a da destruição de Sodoma, em Gênesis 18-19. Como ela está num «texto sagrado», como Deus é inclusive um personagem importante, automaticamente você presume que ela deve simbolizar algo, isto é, referir alguma verdade eterna. E você faz a mesma coisa com os mitos gregos: devem ser símbolos de algo. Ao menos, devem ser alegorias que escondem alguma lição de vida. Assim começa uma comparação entre o que diz a história e essas verdades eternas, ou entre aquilo que uma pessoa madura deve saber.
Creio que, em muitos casos, como o de Sodoma), essa abordagem é tremendamente problemática.
Primeiro, porque ela pressupõe que você já conhece quais são as verdades eternas. O símbolo pode ser difícil de entender, mas você acha que já conhece o simbolizado. E sim, eu mesmo acredito que existam verdades eternas. Porém, o fato de tantas delas terem sido inventadas no século XIX, como a «família tradicional» (que defino pela expectativa de quatro elementos: casamento por amor, pai provedor, mãe rainha do lar, filhos cuja inocência deve ser preservada), faz com que eu me pergunte se já estamos tão por dentro assim da mente de Deus.
Segundo, porque, no caso dos Evangelhos, outro método interpretativo é mais importante do que a alegoria e do que o símbolo: a figura, que representa o esquema de promessa e cumprimento. Por isso o tempo inteiro encontramos a frase «e Cristo fez tal coisa para que se cumprissem as escrituras». Os Evangelhos são (também) uma seleção de trechos do Antigo Testamento, que são apresentados como figuras ou promessas cumpridas pela vinda de Cristo. O menino dança no ventre de Isabel quando Maria se aproxima como Davi dança diante da Arca da Aliança. Jesus caminha em meio à tempestade na direção do barco não como símbolo do homem tradicional que não tem medo de nada e mata javalis por hobby, mas como a Arca da Aliança que é transportada no rio Jordão (em Josué 3); e veja-se que, tendo isso em mente, podemos entender que a dúvida e a pouca fé do apóstolo Pedro no episódio da tempestade (em Mateus) não se referem à capacidade de andar sobre as águas, mas à chegada de Jesus / da Arca da Aliança aos homens reunidos. Você, Pedro, duvida de que a Arca virá?
Não é impressionante o quanto a mera introdução da figura altera a nossa interpretação do episódio? E mais impressionante ainda é o quanto a ignoramos. Muitas Bíblias têm nas margens e nos pés das páginas os textos que são referidos. Para o contexto de X, leia o trecho Y. Bizarramente, muitos católicos ignoram essas referências e preferem buscar uma interpretação simbólica antes de entender a figura presente no texto.
E pode ser mais um spoiler do curso, mas pense em Sodoma. Primeiro, sua história é igual à história grega de Baucis e Filêmon. Segundo, como a própria Bíblia nos convida a comparar seus textos, pense no seguinte: primeiro, o Deus do Gênesis quis destruir o mundo inteiro com o dilúvio. Alguns capítulos depois, esse Deus quer destruir apenas uma cidade, e ainda aceita barganhar com Abraão. Quando chegamos ao profeta Jonas, Deus diz: vá a Nínive, avise a galera, se eles não tomarem tenência, vou passar o cerol; Jonas detesta os ninivitas e quer mais é que eles se estrepem. Então Deus mata uma planta de que Jonas gostava, e diz: você por acaso achou bom eu ter matado a sua planta? Você não gostava dela? Pois eu gosto dos ninivitas, é só você ir lá falar com eles.
Quem, então, é esse Deus? Um sujeito caprichoso? Ou será que a Bíblia foi limpando a barra de Deus com o tempo, mostrando que Deus criou o mundo e nunca quis destruí-lo? Afinal, no Gênesis, Deus expulsa o homem do paraíso para o mundo, mas o Evangelho de João começa dizendo que foi o homem quem expulsou Deus do mundo… «O mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.»
Nem alegoria, nem símbolo: figura, e com direito a uma certa subversão. A promessa é cumprida, mas não do jeito que você tinha imaginado inicialmente. Daí a necessidade de «vigiar e orar»: nada será como você tinha imaginado…
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Será que a explicação acima esclarece por que o título «Ler com clareza»? Porque, sem uma consciência do tipo de interpretação que você está fazendo, você pode não apenas deixar passar o principal, como ainda projetar as suas «verdades eternas» inventadas duzentos anos atrás em textos de dois, três mil anos atrás.
Ler com clareza é ler com um pouco menos de ingenuidade, mas eu não seria louco de dizer que estou vendendo o método seguro para a interpretação correta de todos os textos. Muitas vezes, é preciso apelar para métodos diferentes, ter bastante imaginação, e ter bastante erudição também. Porém, acredito que você pode — e isso eu tiro da minha experiência como tradutor — pelo menos discernir aquilo que você não está entendendo, farejar a ausência de alguma informação importante, ter a sensação de que está na pista errada, e, sim, até entender um bocado de coisas.
Porém, aquilo que surge dessa compreensão não vai corresponder ao sentimento que me parece definir o próprio espírito direitoso (sentimento que partilho), uma espécie de nostalgia daquele tempo (que na verdade nunca existiu) em que as coisas pareciam ser o que eram, em que as essências estavam mais bem representadas neste mundo.
O que surge é algo menos solene, mais subversivo das nossas expectativas, muito mais claro, muito mais despojado dessas falsas transcendências que não passam de projeções. Não a tempestade que vai poupar os justos e executar sua vingança contra os injustos, mas apenas uma brisa, que exige alguma atenção para ser apreciada. Não a munição definitiva para a guerra cultural, mas algo que, como essa brisa, pode trazer um tremendo alívio.