[PEDRO SETTE-CÂMARA] Nem «cacique», nem «índio»
# Nem «cacique», nem «índio»
Se me pedissem para citar um único livro que tenha mudado minha vida, eu responderia imediatamente: A filosofia cristã e oriental da arte, de Ananda K. Coomaraswamy.
Também foi um dos livros que mais reli. E também foi um livro do qual comecei a discordar ao longo dos anos. Mas e daí? Poucos textos foram e ainda são tão instigantes para mim quanto esse.
Eu tinha vinte e poucos anos, tinha emprego, e sabia que não queria mais ter emprego. Sabia que, por temperamento, precisava de um trabalho solitário. Coomaraswamy então me apresentou a ideia do «artesão tradicional» – e nessa ideia vi a possibilidade de me tornar tradutor literário.
Isso porque um dos problemas que eu via no mundo corporativo era que de um lado havia, na fala politicamente incorreta da época, não apenas os caciques e os índios como «muito cacique para pouco índio» (eis uma expressão que me recorda a década de 1990 e a bolha da internet...).
Só que meu problema maior nem era ter de passar alguns anos sendo apenas «índio» para ver se virava «cacique». Meu problema era existencial. Vital. Não apenas eu queria trabalhar com algo que fosse uma preocupação pessoal minha, como não queria, realmente não queria, ter um trabalho que me afastasse muito do meu interesse pela linguagem e pela literatura.
Sim, eu sabia que era melhor ter dinheiro do que não ter. Mas eu já tinha visto muitos homens feitos que nunca conversavam sobre seus trabalhos, homens cujos olhos brilhavam quando eles chegavam naquela aula noturna, naquele curso livre que não tinha nada a ver com seu ganha-pão.
E realmente não os critico. Eu mesmo só tinha um receio: será que vou passar a vida fazendo A tendo o coração em B?
Isso ainda me preocupava particularmente porque, tendo crescido na primeira onde internética da «nova direita» no fim dos anos 1990, eu enxergava perfeitamente o risco de me tornar um sabichão cheio de verdades, mas que nunca pagaria as próprias contas. Eu não achava que as minhas opiniões estivessem erradas, não achava errado nem inconveniente (e nunca achei) eu estar preocupado com Jorge Manrique (um poeta castelhano do século XV), mas eu sentia que não tinha moral para dizer o que eu dizia. Eu ganhava pouco e não tinha um plano certo para a vida.
Foi a ideia do «artesão tradicional» de Ananda Coomaraswamy que me permitiu alinhar tudo. O artesão não é cacique nem índio: ele pensa o trabalho e também o executa, em vez de mandar alguém executá-lo. Ele não imagina processos em que ele mesmo não põe a mão na massa. Nem executa processos sem entender qual seu sentido ou sua finalidade. Ele nem é mera peça na engrenagem nem é puro inventor de engrenagens. Ele não trabalha até virar um bagaço para chegar em casa e se entorpecer com telas, comidas, e bebidas. Como seu trabalho exige seu intelecto, ao trabalhar ele desenvolve a própria sensibilidade. Ele conversa sobre a própria arte.
O engraçado é que fiquei tão empolgado com o livro que comecei a traduzi-lo antes de pensar em ganhar a vida como tradutor. Eu acordava bem cedo e, antes de ir para o trabalho, passava uma ou duas horas traduzindo. Depois eu revia a tradução, comparava, ajustava o texto. Traduzi metade do livro assim, e já divulguei em alguns lugares um dos capítulos (disponível no meu site).
Vou continuar falando desse livro nas próximas newsletters. Vou publicar minha tradução do livro completo. Por enquanto, você pode ter uma amostra do que ele diz por ali.