[PEDRO SETTE-CÂMARA] A vocação e os chamados
# A vocação e os chamados
Na última newsletter, falei de como o livro A filosofia cristã e oriental da arte me ajudou no meu próprio amadurecimento. Ele me deu um ideal: o do «artesão tradicional».
O curioso é que o livro resolveu um problema que não apenas não está previsto no texto, e que, de certa maneira, é até contrário ao espírito do texto.
O problema é que nossa vida moderna é uma vida aberta. Temos a terrível liberdade de escolher «o que ser quando crescer». A sociedade ideal de Coomaraswamy é uma sociedade fechada. Historicamente, nessas sociedades fechadas, você na maioria dos casos apenas seguia os passos dos seus pais.
O segundo problema é que, por mais importante que seja ter grandes ideais e questionar a vida concreta, não dá para simplesmente rejeitá-la. O médico não pode chegar para o diabético e dizer: você não devia ter comido tantos doces. O diabético precisa de tratamento. Para o diabético, o médico apenas ter razão é muito pouco.
Por isso, é preciso tratar do problema do trabalho, do ofício, do amadurecimento, da vocação, do ponto de vista da vida aberta. Do contrário, estamos fazendo só uma parte do serviço.
E como você se guia nessa vida aberta? A resposta já foi dada: com os famosos «ideais». Repito que eu mesmo adotei o ideal do «artesão tradicional» como um modo de amadurecer.
Enquanto eu preparava esta newsletter, aliás, percebi que um dos problemas estava em eu pensar em termos de «vocação» numa escala um tanto grandiosa. Eu encontraria a minha «vocação» e ela me levaria por um caminho formidável. Era uma espécie de raciocínio fechado: se o caminho fosse formidável, era a vocação; e, se era a vocação, o caminho era formidável.
Agora, vocação significa simplesmente «chamado». Originalmente, a palavra vem de um contexto religioso: Deus chama algumas pessoas para a vida nos mosteiros, outras para a vida no matrimônio, etc. Mas se nos ativermos à ideia de «chamado», vamos perceber que (como acontece em vários casos) a ideia religiosa ganha flexibilidade para ser usada na vida mundana.
Porque, por exemplo, você pode se sentir chamado por um ideal, ou pode se sentir chamado por um problema. Eu tive a sorte (ou a graça) de me sentir chamado por problemas de texto, de linguagem, e de poder conectar isso com o ideal do artesão tradicional.
Isso parece próximo de uma visão romântica do ideal e da vocação, porque essas palavras fazem-nos imaginar uma bailarina fazendo uma ponta, no limite do esforço. O escritor que olha fundo dentro de si mesmo. O cientista, mascando a tampa da sua Bic, que imagina o foguete que levará o homem a Marte.
Só que algumas pessoas são chamadas por esses ideais distantes, e outras não.
O que você não imagina, mas deveria imaginar, é também a mãe que presta atenção ao filho e atende até os chamados que ele não sabe que emite. O marido que presta atenção na família e atende seus chamados. Será que preciso ficar dando exemplos para deixar claro que o chamado de uma pessoa é concreto e o chamado da arte da escrita ou do balé é que é a metáfora desse chamado concreto?
Por isso gosto muito da insistência do Ítalo Marsili na ideia de «serviço». Servir é atender chamados. A ideia de serviço pode englobar a mãe que troca fralda, o cientista que imagina o foguete, e a bailarina que fica na ponta.
(Só fico meio cabreiro com o escritor. É que somos muito vaidosos e podemos estar servindo somente a nós mesmos.)
Isso, é claro, ainda pode deixar em aberto o problema da aptidão. Por mais nobreza que haja na vida doméstica (qualquer pessoa que já saiu da casa dos pais sabe o prodígio que é estar tudo sempre arrumado e haver constantemente boa comida na mesa), você ainda pode querer um ofício ou simplesmente precisar dele.
Para encontrar esse ofício, a questão está mais em deixar de ser surdo para os chamados e em deixar de ser cego para as próprias capacidades. Você pode achar que vai ser um grande médico e não aguentar ver sangue. (Eu não aguento.) Ou que vai ser Napoleão Bonaparte, mas não aguenta ouvir tiros. Ou que vai ser intérprete de conferências, mas fica nervoso demais por perder uma palavra e aí não consegue continuar.
(Aqui, porém, não posso ajudar. Deve haver mil testes pela internet, mil perguntas que você pode se fazer. Você é melhor com texto ou com números? Passa bem preenchendo formulários ou tem crises de pânico ao ver um deles? Gosta de estar no meio das pessoas? Já passou uma semana sem sair de casa e não achou ruim? Este é o momento em que o valor de uma outra pessoa que realmente presta atenção em você se mostra: talvez ela possa te dar essa resposta.)
Mais ainda, se você for atendendo os pequenos chamados do cotidiano com boa vontade, acredito que você vá encontrar suas aptidões. O negócio é simples: quanto mais coisas você tentar fazer, mais vai ver onde você contribui mais. (Essa parte é importante, porque para ganhar dinheiro você precisa fazer algo que outras pessoas valorizam.). Eu mesmo, apesar de tudo o que falei, demorei para perceber que meu negócio era o texto.
E ainda acho que estou me virando bem nisso aí.
# APÊNDICE SOBRE CAMADAS
A newsletter mesma terminou ali em cima. Mas eu, que já inventei o story de Instagram com nota de rodapé, agora venho por meio desta inventar também a newsletter com apêndice.
Isso porque, logo depois de produzir a newsletter anterior, fui reler o texto de Olavo de Carvalho sobre as «camadas da personalidade», e percebi que aquilo que falei pode facilmente ser reformulado em termos de camadas.
Talvez você não aguente mais ouvir falar das camadas. Nem eu pretendo virar uma das pessoas que falam de camadas. Só que as camadas ajudam a formular dois problemas da liberdade que estão ligados à pergunta «o que você ser quando crescer?».
Recapitulando, expliquei que Coomaraswamy me ajudou a pegar capacidades que eu tinha (facilidade para idiomas, escrever direitinho), e que eu usava para me afirmar (camada 5), e transformá-las num ofício (a tradução literária), isto é, em algo que tem valor para os outros (camada 6). Assim pude me tornar uma pessoa de quem os outros dependem (camada 7). Depois disso eu pude refletir sobre a minha vida (é o que acontece neste parágrafo: camada 8), e a partir daí eu me abriria concretamente para, digamos, os grandes temas (camadas 9 até 12).
Eu também tinha dito que meu problema era perceber que eu poderia me tornar um jovenzinho arrogante mais preocupado com os destinos da civilização do que com a própria vida. Uma Greta Thunberg reaça, com a ressalva de que a Greta Thunberg ao menos vende livros.
Por que esse problema? Porque eu percebia que não me conformaria com meus ideais. Em outras palavras: nem crescer eu ia, quanto mais ser alguma coisa quando crescesse.
É aqui que a questão se fecha: o jovem que se pergunta o que vai ser quando crescer está em busca de algum ideal, de algum modelo relativamente distante. E isso só existe porque vivemos numa sociedade aberta, moderna, e, em grande medida, «capitalista».
É simples. Até o fim da Idade Média, você provavelmente seguiria os passos dos seus pais. Quem eram seus modelos? Os adultos da corporação de ofício. Quais eram seus ideais? Os do cristianismo. Você não faria da sua vida uma jornada de descoberta de si mesmo.
Hoje, porém, você espera que a sua vida seja um romance. O próprio modelo das camadas da personalidade parece pressupor que a vida é um romance: e, aliás, um «romance de formação». O que é a vida de uma pessoa? É a maneira como ela usou sua liberdade para correr riscos e descobrir a si mesma.
Ou seja: mesmo antes de escolher um caminho concreto, você já enfrenta um questionamento de ideais. As camadas superiores já entram, na forma de problemas, na vida de qualquer criança de vida tranquila que tenha alguma inclinação filosófica. Mas essa é a questão: elas entram como problemas. O fato mesmo de haver muitos ideais é um problema. Pode ser um problema comparativamente muito bom, mas ainda é um problema.
Porque, por exemplo, a mim parece que a dificuldade de fixar um ideal é que pode paralisar as pessoas. No Instagram, volta sempre o tema da acídia, mas isso não é acídia. Acídia é eu querer ser médico, nunca conseguir entrar na faculdade de medicina, desistir, e ficar a esmo na vida. (Posso arrumar outro ideal e sair da acídia, claro.) O que temos aqui é eu nem mesmo conseguir decidir qual caminho trilhar. É como ficar no celular vendo mil coisas, como se ele fosse uma grande vitrine; há tantas coisas, eu nem sei o que eu quero, estou desesperado para ouvir um chamado que faça com que eu me comprometa, mas ouço tantos e tantos chamados que nem consigo prestar atenção em nenhum.
Mas veja, caro leitor, cara leitora: isto aqui é um apêndice. Estou apresentando problemas. Esta newsletter é para quem quer investigar, encontrar formulações melhores, aceitar que o caminho continua aberto — mesmo depois que você amadurece. Por isso, no apêndice eu me permito deixar o problema no ar. Eu mesmo ainda estou pensando nele.