Nunca foi tão fácil não viver
Viver, simplesmente viver,
meu cão faz isso muito bem.
— Alberto da Cunha Melo
A fama internacional e a riqueza inequívoca chegam juntas para Jed, pintor, logo depois que ele completa quarenta anos. Uma exposição de seus quadros é bem recebida pela crítica, cada pintura atinge valores estratosféricos, e, no dia em que a galeria de arte faz o pagamento de milhões de euros, Jed sai da classe média alta para nunca mais voltar.
A única mudança em sua vida é a compra de uma caminhonete Audi.
Logo depois, ele reencontra Olga, seu grande amor. Jed tinha conhecido Olga dez anos antes, quando ela, gerente de comunicações de uma multinacional, contratou seus serviços e fez com que ele ficasse conhecido. Porém, Olga era ambiciosa: pouco depois, voltou para sua Rússia natal, assumindo um cargo mais alto na mesma empresa, e Jed ficou em Paris, sem fazer nada além dos quadros que por acaso o deixariam milionário.
A noite do reencontro tem algo de cinematográfico. Os dois sabem o que significam um para o outro. Jed dorme no apartamento de Olga, mas, ao acordar, tem uma intuição: ele e Olga nunca mais vão se ver. E, como se apenas se resignasse com um destino que simplesmente se impôs e que não depende da sua participação, Jed vai embora antes que Olga acorde. Passa em casa, pega sua caminhonete Audi novinha, e vai entregar um quadro numa cidade do interior.
Na volta para Paris, Jed enfrenta um engarrafamento. Faz um frio desgraçado, mas ele está perfeitamente aquecido dentro do carro, e tem a segunda grande intuição em poucos dias: sua vida, a partir de agora, será sempre assim, protegida, confortável, sem nenhuma grande emoção:
A temperatura exterior era de 17 graus negativos. Ele mesmo tinha sido distinguido, menos de um mês antes, pela lei da oferta e da procura, a riqueza o tinha envolvido subitamente como uma chuva de fagulhas, libertando-o de todo jugo financeiro, e ele se deu conta de que agora ia deixar este mundo do qual nunca tinha realmente feito parte, seus relacionamentos humanos já pouco numerosos iriam ressecar e cessar, ele estaria na vida como estava agora dentro do habitáculo de acabamento perfeito de seu Audi Allroad A6, tranquilo e sem alegria, definitivamente neutro.
Esses são dois momentos centrais do romance O mapa e o território, de Michel Houellebecq (e o parágrafo acima é o fim da segunda parte, em tradução minha). Seria fácil dizer que eles recordam outros momentos em que os homens dos romances de Michel Houellebecq simplesmente não se comprometem, não assumem um risco, mas a cena em que Jed está no engarrafamento se distingue por assinalar o conforto material. A voz popular diria que, quentinho no seu carrão, protegido do frio, você não quer mais nada da vida.
Mas ouça esta frase em outro tom: “você não quer mais nada da vida”.
Seria fácil usar a história de Jed como uma espécie de parábola para falar da necessidade de não descansar, de não ficar fraco. Esse é o caminho óbvio. E não seria um caminho errado. Só que há muito mais aqui. Nem mesmo valeria a pena ler Houellebecq se ele apenas nos fizesse pensar nessas obviedades.
O que chama a atenção no romance é a ausência de obstáculos. Jed nunca realmente precisou ganhar a vida, embora não fosse rico. Foram as mulheres que escolheram Jed. Sua primeira namorada, na faculdade, era atriz pornô — o que não afetava Jed em nada, até porque ninguém à sua volta via isso como um tabu.
Quando Jed conheceu Olga, ela era uma mulher desejada por todos, mas foi ela quem escolheu Jed — não foi ele que teve de lutar por ela. Quando ela foi embora, ele não foi atrás. Quando ela voltou e se jogou nos braços dele, ele não ficou. Seus quadros que ficaram famosos surgiram com certa naturalidade. Não há superação porque não houve obstáculo; não houve nem a clássica história do artista que precisa vencer grandes obstáculos interiores para realizar sua obra.
Aliás, todo mundo que já estudou um pouquinho de como se escreve uma história sabe que uma regra é um personagem vencer um obstáculo exterior e isso sinalizar a solução de um problema interior. Se você ler o clássico O vermelho e o negro, vai ver que o problema do protagonista, Julien Sorel, é ser fiel a seu grande ídolo: Napoleão Bonaparte. Ele resolve esse problema enxergando tudo como uma batalha, e se perguntando o que Napoleão faria. Quando ele conquista uma mulher (o obstáculo exterior), ele se aproxima de Napoleão (resolve seu problema interior).
A vida de Jed, porém, não teve nenhum grande obstáculo. Ele já nasceu na classe média alta, pôde cursar Belas-Artes sem que ninguém dissesse que ficaria pobre, obteve algum sucesso graças à namorada, e depois obteve um grande sucesso sem tê-lo buscado. Tanto que a fortuna que ganhou não afetou sua vida em nada.
Talvez o leitor se pergunte como pode ser tão lido e tão relevante esse Michel Houellebecq, que representa essa vida sem grandes emoções, sem grandes obstáculos.
Talvez o leitor que se pergunte isso tenha um certo medo de reconhecer-se aí. Alguns realmente têm ambições. (Até Jed tinha uma certa ambição artística.) Outros têm necessidades. Mas, com uma classe média cada vez maior, com os confortos materiais cada vez mais difundidos, com um belo computador e quatro paredes para fazer o papel do seu Audi A6 protegendo você do mundo lá fora, o que mais você quer da vida?
Houellebecq começou inspirando-se nos livros de terror de H. P. Lovecraft. E o que Houellebecq conseguiu fazer foi retirar os monstros e manter o clima de terror. Se ele consegue conduzir você por centenas de páginas em que não há nenhum grande obstáculo a ser vencido, é porque você, leitor de classe média, vai se reconhecendo a cada página. Você não precisa realmente ganhar a vida, nem precisou realmente fazer muita coisa para ter o que tem. Não precisou transformar a si mesmo. Não precisou romper com a família nem com os amigos. Não houve grandes sacrifícios na sua vida. Tudo foi um tanto inercial.
Essa já pode ser a realidade da classe média francesa e de uma pequena parcela da classe média alta e dos ricos do Brasil (é que, no Brasil, é preciso ser rico para estar na classe média). Por baixo dela, há esse terror de ter simplesmente vivido a vida, de ter-se deixado levar, de que tudo poderia ter sido diferente, mas você mesmo estava no Audi A6 que escolheu, deixando as dificuldades do lado de fora.
Parece até que hoje em dia o próprio carro já vai levar você, e nem dirigir você precisa mais.