1
Talvez por ter sido a atividade à qual mais me dediquei até hoje, a tradução acabou virando um modelo para mim. Vejo a tradução em toda parte; vejo o mesmo compromisso de realmente entender o que um texto diz e de ser capaz de repeti-lo de outro jeito. Posso traduzir um texto de outra língua para o português, mas também posso imaginar como traduzir uma certa ideia para um certo público.
Esse último caso envolve uma das diferenças que mais me interessam, que é a diferença entre o ponto de vista do iniciante e o ponto de vista de quem já tem alguma experiência. Por exemplo: comecei a ler romances velho, por volta dos trinta anos, e achei O animal agonizante, de Philip Roth, algo estupendo. Hoje digamos que a história do professor de 62 anos que se envolve com a aluna de 27 me parece o tipo de coisa que justifica um filme como Barbie.
Para que não me acusem com a mais verdadeira acusação que podem me fazer, que é a de elidir passos argumentativos, digo isso porque esse ponto de vista é muito ingênuo. Sim, a experiência demonstra que o prestígio do professor compensa a diferença de idade. Mas o ponto de vista do sedutor de 62 anos é muito óbvio, é o mesmo ponto de vista de um adolescente de 16 anos num corpo de 62. Seria mais interessante ler a história do ponto de vista da mulher. Ninguém precisa me convencer da beleza de um corpo feminino jovem. Agora, como o prestígio seduz essa moça? Será que ela tem problemas de auto-estima? Até que ponto há uma afinidade real? E, o que me parece ainda mais interessante, porque nunca vi ser explorado (mandem-me exemplos, se for o caso), por que um professor experiente, de 62 anos, não distingue entre o eros intelectual que sustenta as mais fecundas relações entre professor e aluno do eros sexual? Não parece claramente abusivo que a pessoa mais experiente force essa confusão para satisfazer-se? Se não parecer, basta pensar num tempo mais longo: mesmo que a moça seja responsável, consinta, etc., dali a vinte anos ela terá uma lembrança mais positiva do homem que lhe disse: «Não confunda as coisas.»
Eis. Eu não diria que li tantos romances assim, mas tenho um ponto de vista experimentado o suficiente para formular essa objeção. Para quem nunca foi de ler romances, O animal agonizante pode parecer incrível, a súbita entrada no mundo adulto. Para quem já leu e já refletiu um pouco, as carências da obra são evidentes.
A diferença entre os dois pontos de vista está no foco da atenção. O leitor iniciante tem um deslumbramento mais geral, ao passo que o leitor experiente já tem algumas perguntas mais específicas.
E o que eu acabei de fazer foi justamente um exercício de tradução. Imaginei a pergunta que me seria feita, e propus uma resposta. Essa mesma diferença de pontos de vista aparece em várias áreas. Se você comprou sua primeira caneta-tinteiro, ela será deslumbrante em relação a uma esferográfica. Se você já comprou cinco, ou dez…
Dar essa resposta, notar essa diferença, é traduzir. Traduzir significa simplesmente algo como «conduzir de um lado para o outro» (trans + ducere, no latim). Um lado pode ser uma língua e outro lado pode ser outra língua. Mas um lado também pode ser um ponto de vista e outro lado, outro ponto de vista.
2
Por um bom tempo resisti à ideia de oferecer mentorias, provavelmente porque meus grandes mentores acabaram sendo livros lidos e relidos obsessivamente. Não havia método nenhum na leitura, exceto o meu interesse e a necessidade de ter certeza de que eu tinha realmente entendido o que o autor dizia. Essa certeza, por sua vez, só é atingida quando eu sei que sei explicar com as minhas próprias palavras aquilo que o autor falou.
Esta semana, por exemplo, enfrentei o capítulo «Problemas de técnica em Proust e em Dostoiévski», de Mentira romântica e verdade romanesca. Logo gravarei uma aula a respeito dele para o curso O mapa do subsolo (está em «lançamento soft»); precisava ser capaz de formular o que está ali com as minhas próprias palavras, o que significa enxergar as experiências ali descritas. Não acredito em «mastigar» Girard ou Proust ou Dostoiévski; acredito em traduzir as ideias desses autores.
Porém, desde que ofereci para três turmas a Oficina de Escrita, e passei a me reunir diretamente com os inscritos para falar de seus projetos de escrita, de estudo, e até de trabalho, tive essa mesma experiência de «tradução». Tento formular com mais clareza as demandas dos inscritos, e idealmente consigo imaginar quais são as armadilhas em que eles podem cair e como evitá-las. É muito gratificante a sensação de que, após trinta minutos ou uma hora de conversa, outra pessoa deu um belo passo à frente (e saber disso porque, enfim, essa outra pessoa me disse exatamente isso). É algo que me deixa energizado, animado.
Curiosamente, não era assim que eu me imaginava. Eu não me imaginava trabalhando tão diretamente com as pessoas, exceto no período em que cogitei seriamente a carreira universitária (antes de ser acometido por uma dor crônica na cervical, controlada apenas em 2023). Mas mesmo naquela época eu não imaginava que essa capacidade de tradução pudesse ser tão útil.
Assim, se você tiver interesse em discutir um projeto de escrita, em obter orientações para estudos, em ter alguma aula particular, basta responder este email que podemos pensar em algo. Continuarei ofertando cursos online, mas… é muito melhor falar diretamente para outra pessoa do que apenas imaginar essa outra pessoa enquanto falo para a câmera!