O vídeo é um resumo do texto abaixo. É um novo formato que estou experimentando.
1 Al Gore & a verdade inconveniente (mas não para o público de Al Gore)
Uma situação subsolesca se repete todos os dias nas redes sociais. Chega lá o blogueiro e anuncia que traz verdades inconvenientes, muitas vezes advertendo o público de que «vocês não estão preparados para essa conversa». Porém, a «verdade inconveniente» nunca é rechaçada pelo público a quem ele se dirige. Antes, o público sorve com sofreguidão essa verdade e, muitas vezes, faz dela sua bandeira.
É como se fosse um eterno retorno do lançamento do documentário Uma verdade inconveniente, do ex-vice-presidente americano Al Gore: incomodados ficam os outros, aqueles outros que… não são o público do documentário. Al Gore e seu público, assim como o blogueiro e seu público, estão unidos contra um terceiro, ausente da conversa, para quem as «verdades» seriam de fato «inconvenientes».
Assim, o blogueiro, o ex-vice-presidente, e, por que não?, também o venerável colunista de jornal colhem os louros da «coragem» e da «polêmica» sem enfrentar polêmica nenhuma. Quase sempre, eles preferem falar apenas com pessoas que já tendem a concordar com eles. Nas redes sociais, se o blogueiro de fato chega a enfrentar alguém, é no máximo aquela grande divindade das internets, o misterioso e insondável Algoritmo — com quem, aliás, o blogueiro adoraria fazer um pacto, se ao menos soubesse em qual guichê apresentar-se.
Parece ao mesmo tempo bizarro e necessário dizer que uma polêmica teria de envolver ao menos duas pessoas discutindo o mesmo tema uma com a outra. Porém, para falar com outra pessoa, da qual você discorda, até com veemência, é preciso guardar um certo respeito, nem que seja porque, enfim, discordar de alguém é um sinal de que você prestou atenção nesse alguém.
Mas temos mais pavor da discordância e da polêmica reais do que teríamos de abordar a garota mais popular da escola num filme de high school. Preferimos falar para a nossa própria bolha, para o nosso próprio gueto, a falar com o famoso outro lado. Não há exemplo melhor disso, até, do que a enxurrada de livros sobre a direita, todos explicando a direita para a esquerda, nenhum ousando dialogar com a direita, mesmo quando ela faz parte dos seus contatos pessoais. Não há debate; há no máximo a pretensão antropológica de quem põe uma roupinha de safári e vai examinar a vida dos selvagens para depois apresentar seu paper na Royal Society of Soh Rokabbah — isso quando o venerável autor não assume o papel de homem insone num mundo sonâmbulo, aceitando heroicamente a missão de destrinchar o simulacro de pensamento dos bárbaros que assomam aos portões. The white man’s burden!
2 Não que Gore tenha começado
Não que Al Gore tenha sido o famoso «quem começou». Juntar-se com os amigos para falar de um terceiro ausente da conversa é o próprio fundamento da cultura humana. Eu mesmo poderia, agora, pensar em todos os livros, sobretudo às direitas, de denúncia do mundo moderno escritos no mundo moderno para leitores do mundo moderno. A verdade inconveniente do aquecimento global pode ser substituída pela verdade inconveniente do fechamento da mente americana, do colapso da cultura, da destruição da família. Selecionei Al Gore porque a clareza de seu exemplo é caricatural; ao usar a expressão «verdade inconveniente», ele foi como que o primeiro blogueiro que entrava em cena dizendo «trago verdades».
O documentário de Gore chegou a ser respondido? Tudo o que quero dizer aqui depende disso. Se você escreve algo para Al Gore, imaginando que o próprio Gore leria, dizendo apenas coisas que você teria coragem de dizer se estivesse a sós com Gore, pessoalmente, você está respondendo. E esse último ponto é bem importante. Se você vai detonar alguém, você teria coragem de usar aqueles mesmos termos caso estivesse a sós com esse alguém?
Agora, se você prepara uma violenta desmistificação de Al Gore para o consumo do seu público cativo, então estamos no terreno da pura conveniência. Foi conveniente para você Gore produzir o documentário, porque assim você recebeu insumos gratuitos para a produção da sua fábrica de conteúdo. Também foi conveniente para Gore falar para seu próprio público. Ele fez o vídeo original, você produziu o vídeo do react.
3 A subsolização ou pornificação da cultura
Talvez seja a ideia de «pornificação» da cultura seja mais simples de entender. O debate público é substituído por um arquipélago de bolhas ideológicas. Uma bolha fala mal da outra, mas nunca fala com a outra. A outra bolha vira pretexto e personagem de uma fantasia triunfalista: veja como estamos certos, ao passo que eles, bem, eles estão errados e são ridículos. Aquelas pessoas lá, vejam, podemos explicá-las, subjugá-las, e jamais admitiremos que não conseguimos fazer nada além de acompanhá-las morbidamente.
Isso é semelhante à pornografia, e é uma das experiências mais típicas do subsolo dostoievskiano, porque: