Aviso: Os fatos relatados abaixo são nauseantes.
Ouvindo o Répliques há alguns anos, volta e meia ouço os nomes de Gabriel Matzneff e de Vanessa Springora (lembre-se de pronunciar Vanessá Sprringorrá). Matzneff, aparentemente, era um escritor pedófilo que hoje é mais conhecido como pedófilo escritor. Está com 83 anos, mora no norte da Itália, e tenta ser discreto — provavelmente para não ser linchado. Seus crimes, ao que parece, prescreveram. Mas o detalhe mais curioso, para o nosso ponto de vista atual — e aqui temos uma bela advertência para quem acha que todo tiempo pasado fue mejor — é que não era na clandestinidade que Matzneff mantinha relações com jovens púberes ou nem tanto: ele contava o que fazia em seus próprios livros, e, na flor dos seus cinquenta anos, não deixava de passear de mãos dadas por Paris com as namoradinhas de quatorze.
Claro que, diante do personagem, temos a deixa perfeita para subir no pedestal do moralismo para jogar nossa melhor pedra. Há uma satisfação inegável em ser violento tendo razão. Porém, uma pequena pausa basta para aumentar a consternação.
Hoje, à distância, é facílimo ver em Matzneff um monstro. Agora, se seus livros eram publicados, se eram lidos, se Matzneff chegou a ser um autor premiado, é porque houve uma cumplicidade com o que ele fazia. Ou, para usar o termo que Vanessa Springora e também Francesca Gee usam, havia uma omertá, o código de honra da máfia. Matzneff, até pouco tempo, ao contrário de suas vítimas, era intocável, protegido — mesmo que publicasse que ia para as Filipinas aproveitar-se de meninos de onze anos e que um de seus ensaios mais famosos se chamasse Les Moins de seize ans («Os menores de dezesseis anos»).
Vanessa Springora conheceu Gabriel Matzneff quando tinha treze anos, e começou a se relacionar com ele aos quatorze. O pai era ausente, a mãe era assessora de imprensa de uma editora, a casa era frequentada por escritores. Matzneff, como diz Denise Bombardier (no vídeo que ponho abaixo), numa ideia retomada por Vanessa Springora, «atraía mocinhas com sua fama como um ogro atrai as crianças com balinhas».
As vítimas são atraídas, seduzidas no sentido etimológico da palavra, de «conduzir à parte». São, é claro, as vítimas propensas a comprar o Pão de Açúcar, e Vanessa Springora tem plena consciência de como chegou a desejar o relacionamento.
Lembro de minhas colegas de escola que suspiravam por professores com o triplo de sua idade, ou mais; ou das calouras que pela primeira vez viam um professor universitário, muito mais maduro, falando com autoridade. Porém, quantos desses homens se aproveitaram do prestígio que ganhavam numa situação extremamente desigual? Mesmo que não levemos em conta a lei, não é porque você pode que você deve. Sem qualquer moralismo, para mim basta imaginar como ele e ela se sentiriam no futuro. Eu, com 46 anos, conseguiria realmente crer no discernimento de uma menina de 16? E ela, bem antes de chegar aos seus 46, não me acharia um crápula? Isso é bem diferente de um relacionamento entre pessoas de discernimento igual que termina de maneira triste.
(O grande paradoxo, o ponto mais interessante, é que o desejo não é produzido pela igualdade, mas pela desigualdade. Desejamos o que não temos. Queremos o que nos falta e nos complementa. Não algo tão diferente a ponto de ser estranho demais, mas não tão parecido a ponto de ser mais do mesmo.)
Diante da notícia do relacionamento, a mãe de Vanessa, após o choque inicial, julga estar diante de uma filha «madura para a idade» e certamente decidida, e se lembra, como boa participante da geração de 68, de que a ordem moralista não deve impedir o corpo de gozar. (O que, segundo O consentimento, nem lhe ocorreu muito naquela relação.) O pai de Vanessa nem sabe do que acontece. Os amigos de Matzneff, é claro, não veem nada de mais. E, ponto importante, Matzneff proíbe Vanessa de ler seus livros de memórias.
Para mim, o ponto mais deprimente de O consentimento é o capítulo em que Springora, com meros quatorze anos, vai para o hospital. O diagnóstico: reumatismo. Como numa fábula, ou como numa parábola, aparecem três adultos.
O primeiro é um psicanalista amigo da mãe, que lhe deixa com um trocadilho com ares de grande sabedoria. Diz que se ela está com dor nos genoux (joelhos, Deus sabe como a tradução resolveu essa), então isso quer dizer que o problema dela é um problema de je à nous (do «eu» com o «nós»), o que é como dizer que ter um problema no braço é apontar para um problema do Brasil (br) com o aço. Só consigo pensar que, se era isso que Nelson Rodrigues testemunhava dos psicanalistas, é muito fácil entender o asco que ele tinha da psicanálise.
O segundo adulto é o pai. O pai pródigo que volta cheio de sorrisos para a filha frágil na cama do hospital. A filha, porém, claramente ressentida com a ausência dele, tasca-lhe um «E você lá sabe da minha vida? Pois eu estou namorando o famoso Gabriel Matzneff.» Ao que o pai, muito paternalmente, joga uma cadeira contra a parede, chama a filha de vadia, e sai gritando pelos corredores, para nunca mais voltar.
O terceiro adulto é um ginecologista. Modernoso e prafrentex, ele conversa com Vanessa. Ela ainda é virgem, porque tem medo da dor (o «casal» relaciona-se usando a via, digamos, menos ortodoxa). Ele então se oferece para resolver o problema do hímen com a ajuda de uma anestesia local e de um bisturi. Et voilà!
(Porém, se há um atenuante para o médico, Vanessa Springora esclarece que ele ao menos não sabia que seu «namorado» era um homem 35 anos mais velho.)
Se essa entourage de adultos não basta para acabar com a ideia de um Matzneff que é um monstro em contraste absoluto com a boa sociedade, podemos ver o clip de um antigo programa de TV. O apresentador diz que Matzneff é «especializado em secundaristas e em mocinhas» e lhe dá a oportunidade de justificar tão excelsa preferência, enquanto todos acham graça. Apenas uma mulher, a já mencionada Denise Bombardier, fala contra Matzneff, e lhe diz que «a literatura não pode servir de álibi para a pedofilia».
A reação indignada de Matzneff, mais para o fim do vídeo, é uma joia. Falo em «indignação» pensando em Aristóteles, que explica, na preciosa parte final da Retórica (recomendo muito a tradução que linkei), dedicada à descrição das emoções e dos públicos, que a indignação surge quando uma pessoa superior recebe um insulto de alguém inferior. É como se Matzneff e os presentes de repente fossem insultados pela vil ordem moralista, que está muito abaixo de algo sublime como a literatura. Ele reclama da «agressividade» de Denise Bombardier, a qual, no entanto, apenas repete em tom de desaprovação a mesma coisa que ele diz em seus livros.
Acredito já ter me deparado com essa indignação matzneffiana diversas vezes na vida, inclusive pessoalmente. O tom de quem é obrigado a descer do pedestal para lidar com o brucutu insensível que não pode, jamais, ser confrontado diretamente. Se o confronto direto for admitido, então a imagem que temos de nós mesmos como pessoas de bem, elegantes, interessantes, vai acabar. Estamos dispostos a chegar ao homicídio, se preciso for, em nome da preservação do nosso narcisismo. (Digo isso com total seriedade, e seria minha advertência ao filho que não tenho.)
O fim do relacionamento de Vanessa e Matzneff, porém, não foi o começo da razão. Vanessa Springora rompeu com Matzneff não por ter caído em si, mas por tê-lo visto com outra e, pouco depois, por ter violado a proibição de não ler seus livros. Ao descobrir que era apenas mais um item de coleção, porque Matzneff vivia de publicar suas aventuras com mocinhas, de reproduzir suas cartas, Vanessa largou o homem que tinha mais de três vezes a sua idade.
(A cereja do bolo: a mãe de Vanessa, ao ouvir a notícia, lamenta pelo «pobre Gabriel», que era «louco pela filha».)
Hoje, depois de anos e anos de terapia, de anos em que seu corpo ficou — contrariando as sublimes esperanças da geração de sua mãe — incapaz de gozar, Vanessa Springora tem 52 anos, trabalha no mundo editorial, vive um casamento feliz, e tem um filho adolescente. No vídeo abaixo, ela fala de como o clima de opinião mudou rapidamente e permitiu que seu livro fosse bem recebido. Ela nota que ainda em 2013 Gabriel Matzneff recebia o importante prêmio Renaudot…
A leitura de O consentimento, na verdade, me deixa nem tanto com a compaixão pela vítima, mas com uma perplexidade difícil de superar. Matzneff não agia em segredo. Antes, publicava praticamente tudo (a polícia chegou a visitar a editora Gallimard atrás de trechos que Matzneff e seu editor teriam preferido omitir de alguns livros). Sua monstruosidade não se fez sozinha. Ele não pode ser singularizado como bode expiatório, porque teve a cumplicidade de muitos e foi recebido com deliberada indiferença por muitos mais. A fim de simplesmente não se estressar, quantos adultos não entregaram os jovens nas mãos de ogros simpáticos, afetando indignação quando alguém teve a coragem de lhes dizer que não, isso não era nada bonito?