107 Prefácio a um texto ainda não enviado
E um convite aos assinantes pagantes; o grupo de «Anorexia»
Aviso: convido os assinantes pagantes a uma conversa comigo na quinta-feira, 9 de maio, às 20h, por Google Meet ou Zoom (ainda vou escolher). O convite será enviado somente aos assinantes pagantes da newsletter. É só apertar aí embaixo. Pretendo tornar essa conversa periódica — uma aula periódica? Veremos juntos.
Emmanuel Carrère começa dois livros admitindo que não sabe muito bem por onde começar. O adversário — eletrizante, não compre porque você não vai conseguir fazer mais nada — começa com a confissão de que, após ler oito zilhões de páginas processuais e de fazer treze zintilhões de entrevistas, ele não tinha ideia do que fazer. Então começou a escrever uma carta ao editor: «Pô, foi mal, é que…» E o livro começou a sair ali. Creio que foi nesse livro, de 2000, que nasceu seu estilo, que eu mesmo admiro imensamente e gostaria de imitar: a pura narração de um observador compassivo e sem julgamento, quase como se o Espírito Santo contasse uma história.
Mas, antes que eu me perca, retomo o fio da meada: o segundo livro é Yoga (que não consegui ler até o fim, só gosto do Carrère quando ele fala de outras pessoas), que começa simplesmente com um «Como é preciso começar de algum lugar, começo aqui» — e pega um ponto aparentemente aleatório para puxar o seu fio.
Eu mesmo há boas semanas dou voltas com um texto bem longo a respeito de como o filme Nefarious só faz sentido enquanto fantasia de vingança. Mas o texto só fará sentido se o leitor for capaz não apenas de entender algumas coisas antes (claro que o leitor é capaz), mas de tê-las em mente enquanto lê meu texto.
A primeira delas é que toda obra, assim como todo objeto, todo artefato, faz sentido dentro de um contexto. Meu relógio Seiko faz sentido no meu pulso. O papel serve para escrever, para ler, em casa, na escola, no trabalho. Quando você vai a uma exposição e vê um objeto egípcio de três mil anos, uma plaquinha explica não apenas o que é aquele objeto (se for um pente, você já sabe qual seu contexto) como seu contexto. Muitos debates arqueológicos podem ser resumidos a isso: em que contexto esse negócio que descobrimos aqui faz sentido?
Uma obra de arte moderna também tem contexto e sentido. Não importa se é uma grande obra que transcende a transcendência transcendental. Dom Casmurro pode ser mais do que uma meditação sobre o ciúme (no sentido de que o ciúme consiste na dúvida e não na certeza), chegando mesmo a refletir o ciúme em sua forma mesma (pense nas idas e vindas da narração de Bentinho), mas não pode ser chato. Não pode ser maçante. Todo romance tem de valer como entretenimento para algum leitor. Talvez não seja você. Nem todos os livros foram feitos para todos os leitores. E o romance, é claro, pode ser mais do que entretenimento, mas ele não pode não ser entretenimento. Se o romancista quiser apenas fazer uma reflexão sobre o ciúme, ele pode escrever um ensaio.
A principal dificuldade que as pessoas têm para entender a arte moderna, especialmente as artes plásticas, está na falta de contexto. Ninguém se pergunta por que o Duque de Whatever quis encomendar um autorretrato no tempo em que ele não podia tirar uma selfie com seu iPhone. Mas, se eu mesmo me pergunto qual é a da banana presa com adesivo na parede, por outro lado sei que Marcel Duchamp pôs seu mictório no museu obviamente para fazer piada, para dizer: olha, é só botar um negócio no museu que as pessoas enchem a boca e chamam de arte.
Ainda hoje a piada funciona. Na minha adolescência, entrei uma vez no Museu de Arte Moderna de Nova York e vi os turistas mirando — admirando? —, talvez perplexos, a roda de bicicleta que Ducham também quis pôr no museu. Não sei se ela veio antes ou depois do «Ar de Paris».
Agora, existe um ponto em que o trabalho do artista se identifica com o do marqueteiro, que é a identificação de demandas. Digamos que a demanda seja o contexto. Vai produzir para quem, onde, quando, como? O que essas pessoas querem? Se você escrever um livro só porque você mesmo quer, você vai se espantar com o fato de que ninguém quer ler? Se você acredita que o sucesso é uma pura decorrência do que você julga ser o seu talento, você é pior do que um amador.
Mas bem. O autor e o marqueteiro vão fazer isso, mas eles não vão explicar isso. Talvez até parte do trabalho deles tenha algo de intuitivo. Quem vai destrinchar tudo isso aí é o crítico. O crítico vai olhar aquele produto que não tem um contexto tão evidente (ninguém precisa criticar um fone de ouvido, todo mundo já sabe qual o contexto de um fone de ouvido) e vai dizer: se existe a demanda tal, presente nesse público aqui, então esse objeto atinge esta e aquela finalidade. Criticar não é dizer «esse livro é ruim», mas ser capaz de dizer: «esse livro mira em X, será que acerta em X?, vejamos». Daí você pode até fazer o seu juízo de valor, mas a base da crítica tem de ser essa explicação.
Assim, quando eu aparecer aqui para explicar por que Nefarius não passa de uma fantasia de vingança, tenha em mente o contexto. O público de Nefarius é um público que costuma ser ridicularizado (inclusive por gostar de Nefarius). É um público que não se vê representado no cinemão, na grande mídia. Aliás, é o público que se sente acuado pelo cinemão e pela grande mídia, os quais até cogitam falar desse público, mas não com esse público. É um público que se sente profundamente marginalizado. É um público que está no subsolo.
Esse público, como qualquer outro, tem suas demandas. Quem as capta pode se eleger presidente. Ou produzir um filme como Nefarius, que é o equivalente a um vídeo pornográfico para quem está desesperado por conectar-se com outra pessoa. Chega uma hora em que, enfim, vai o vídeo mesmo.
Agora, mais informações sobre o grupo de estudos de Anorexia e desejo mimético, de René Girard, que começa nesta quarta, dia 8. Vou conduzir a discussão justamente em torno da relação entre a cultura e o transtorno mental. E, entre a roda de bicicleta, as hordas fotografando a Mona Lisa, e Nefarious, acho que há muitas oportunidades para um bom transtorno.
Aqui está a mensagem que os primeiros interessados e inscritos receberam:
«Anorexia e desejo mimético»
— Datas: 8, 15, 22, e 29 de maio de 2024
— Horário: das 20h às 22h
— Como: por Google Meet ou Zoom
— Haverá gravação das reuniões? Sim
— Custo: R$ 400; pagamento por PIX para ps@pedrosette.com ou R$ 420 por cartão em https://chk.eduzz.com/2357723
O texto-base é o livro Anorexia e desejo mimético, de René Girard. Discutiremos também o prefácio de Jean-Michel Oughourlian, a introdução de Mark Anspach, e a entrevista com Girard ao final.
Na primeira aula, começaremos discutindo o texto principal de Girard, que nasceu como palestra dada em Stanford, originalmente em inglês (disponível aí no link).
Pretendo ainda discutir a comunicação relacionada ao emagrecimento e ao tratamento médico.
Vejo que os programas de emagrecimento partem da idolatria. São vendidos por pessoas excepcionalmente magras, fortes, eficientes, produtivas: não são vendidos por pessoas simplesmente magras. A magreza é vendida como os demais produtos: um passaporte para um mundo mágico. É vendida a ideia de que, com o emagrecimento, vem uma vida nova, mas essa vida nova também não é vendida de maneira realista, isto é, como se fosse um novo conjunto de bônus e de ônus, entre os quais está o novo ônus de… manter o peso conquistado.
Daí surgem perguntas.
1. Seria possível criar uma comunicação a respeito do emagrecimento que não fosse baseada na idolatria? Vejam um exemplo. Se uma pessoa se sente estimulada a praticar a temperança, então um peso mais saudável torna-se uma mera consequência de médio a longo prazo. Porém, a temperança também não pode ser um objetivo em si; toda virtude é um meio para um fim, e nunca um fim em si mesmo. No meu caso pessoal, minha finalidade (bastante explícita para mim mesmo) é a manutenção do meu próprio bem-estar. Não quero sentir leseira, não quero sentir inchaço, não quero ficar incapacitado de trabalhar… Não chego a pesar meus alimentos, mas sei qual a quantidade que vai me satisfazer, e me permito variá-la todo dia e fazer compensações.
2. Essa comunicação a respeito do emagrecimento seria comercialmente viável? Por «comercialmente viável» quero dizer: ela permitiria que um profissional permanecesse na classe média, tendo uma casa e talvez um carro, além, talvez, de um consultório?