Pedro Sette-Câmara

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115 Uma introdução ao desejo mimético
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115 Uma introdução ao desejo mimético

Na forma de três discussões (ou três aulas, se você quiser) sobre a mediação

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ago 08, 2024
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Neste texto, apresento uma nova proposta de Seminário para agosto, com preço bastante reduzido. Os Seminários anteriores foram bastante avançados, tiveram público excelente, e formamos uma comunidade muito interessante na forma de grupos dos WhatsApp, nos quais escrevo com alguma frequência.

Continuando a experimentar com o formato de aulas apenas por Google Meet (cujas gravações são disponibilizadas depois), desta vez pensei num Seminário de tipo introdutório, aberto a um público mais amplo, e pensando em estudantes que não dispõem de muitos fundos.

Sempre me pediram um «curso de teoria mimética», e sempre respondi que isso era meio complicado, porque a teoria mimética brilha quando é bem aplicada, quando seus princípios são revelados numa situação concreta (ou na análise de uma obra de arte), mas, quando é apresentada esquematicamente, ela fica parecendo meio troncha, algo interessante mas um pouco bizarro, incômodo.

Ocorreu-me uma solução para quem deseja uma discussão mais organizada, que valha como uma apresentação do desejo mimético (mas não do mecanismo do bode expiatório): discuti-lo a partir das três formas de mediação do desejo apresentadas por Girard: a mediação íntima, a mediação externa, e a mediação interna. Essas três formas de mediação correspondem a formas de relacionar-se. Um marqueteiro diria, não sem razão, que eu deveria vender isso como um curso de relacionamentos.

Se o leitor quiser ter uma ideia delas, pode ler o texto abaixo, que é meu primeiro rascunho para o curso. Mantenho meu compromisso de jamais enviar um texto que seja uma carta de vendas, mesmo disfarçada; o texto pretende valer por si mesmo.

Porém, o texto também vale como um convite para quem quiser se aprofundar. Para inscrever-se, basta fazer o pagamento por Pix ou por cartão, e mandar um email para ps@pedrosette.com.

As reuniões são gravadas e compartilhadas até 24 horas depois que ocorrem.

Formas de pagamento: Pix de R$ 150 (R$ 135 para assinantes pagantes da newsletter) para ps@pedrosette.com ou pagamento por cartão. O assinante pagante encontra um cupom de 9% de desconto ao fim do texto. Não há reembolso.

Vamos à apresentação do tema.

Girard concebeu a teoria do desejo mimético ao longo de várias viagens de trem. Se houvesse smartphone para ele ficar olhando durante a viagem, talvez nunca tivesse pensado em nada

1 A mediação íntima

A mediação íntima é mencionada apenas no último livro de René Girard, Rematar Clausewitz, que consiste numa longa discussão com Benoît Chantre, traduzido por mim para a É Realizações uns bons anos atrás. Não me parece nem um pouco inapropriado que a mediação íntima surja no contexto de um livro que discute a possibilidade do fim do mundo. Ela me faz pensar no verso que virou um dos motivos para que Auden renegasse seu poema «September 1st, 1939»: «We must love one another or die», «ou nos amamos uns aos outros, ou morremos».

(Para quem não clicar no link, um dos motivos para Auden ter renegado o poema é que, na verdade, we must love one another AND die.)

Girard e Chantre dão dois exemplos ao falar da mediação íntima. Um é o poeta Hölderlin, que, na Europa abalada pela violência da Revolução Francesa e das invasões napoleônicas, recebia as pessoas com extrema reverência no quarto em que vivia numa torre em Tübingen. O outro vem de Pascal, que fala da distância mais adequada para ver um quadro: nem tão perto que o todo seja perdido de vista, nem tão longe que o detalhe se torne indiscernível.

Porém, e talvez até porque Girard não teve tempo de explorar a mediação íntima, me parece que é fora de sua teoria que ela encontra uma expressão muito bem desenvolvida: isto é, na teoria dos apegos (attachment theory — John Bowlby, Mary Ainsworth) e nos estudos sobre a vergonha tóxica (John Bradshaw, Pete Walker) ou crônica (Patricia A. DeYoung). Um ponto, aliás, que merece ser ressaltado é que ao menos John Bradshaw tem um antepassado em comum com Girard: Max Scheler. Girard começa seu primeiro livro sobre o desejo, Mentira romântica e verdade romanesca (1961), com uma citação de Scheler: «Os homens serão deuses uns para os outros»; Bradshaw começa seu Healing the Shame that Binds You citando o ensaio de Scheler sobre o pudor.

Agora, Bradshaw chama o pudor de «vergonha saudável» porque o inglês não tem uma palavra para «pudor» que o distinga inequivocamente da vergonha, as duas palavras sendo traduzidas por shame. O pudor é o respeito pelos limites do outro, pelo contorno do outro, pelo espaço do outro; é o desejo de não violar esses limites — e chamo a atenção para a raiz comum entre violação e violência. Daí que eu diga, voltando à mediação íntima, que ela é feita de proximidade e reverência. Daí, também, que possamos ver a reverência não só como uma forma de pudor, mas como algo a mais: o desejo de que o outro possa crescer em paz, com alegria, sem ser conduzido a provações ou tentações, como se pede no Pai-Nosso.

Talvez não seja muito insano dizer que o «reino dos Céus» é dominado pela mediação íntima, porque nós cristãos temos um Deus que nos chama de amigos (João 15, 15). Aliás, a mediação íntima também existe entre amigos ou entre casais harmoniosos, e é ela que sustenta seus relacionamentos.

A mediação íntima parece encontrar uma tradução naquilo que hoje os psicólogos chamam de «espelhamento», e que corresponde, entre outros, à atitude de reconhecer as emoções do outro e ser capaz de responder apropriadamente. Se uma criança tem suas emoções validadas pelos pais, se os pais respondem (na maior parte das vezes) de maneira adequada, ensinando a criança a lidar com suas emoções, então temos a mediação íntima; e aqui devo fazer a ressalva fundamental de que, na teoria mimética, a mediação sempre tem algo de deliberado por parte do imitador. Os pais ou responsáveis percebem que a criança está, por exemplo, com raiva, validam essa emoção e a ensinam a reconhecer a raiva e a lidar com ela.

Validar a emoção alheia não tem nada de misterioso. Se você diz que está com um problema, que está dormindo mal, você só espera ouvir um «puxa, que droga». Ou, se você está contente, você espera ter alguém que possa ficar contente com você. O seu amigo, a pessoa que você escolheu, é exatamente aquela que valida o que você diz. A mediação íntima dos pais consistiria em validar as emoções das crianças e desempenhar uma função pedagógica. (A ideia de «vou te traumatizar aqui dentro de casa para você já estar pronto para quando o mundo for te traumatizar» me parece, e escolho bem a palavra, a forma mais banal de satanismo.)

Os psicólogos que lidam com a vergonha ou com a teoria dos apegos dirão que certos problemas posteriores do adulto vêm de falhas no espelhamento. Os «estilos de apego» (os famosos attachment styles) de Bowlby corresponderiam aos tipos de falhas. Se uma criança entende que a melhor maneira de manter a conexão com os pais ou responsáveis é, por exemplo, ignorando as próprias emoções que desagradam os pais, então ela tenderá a desenvolver um estilo «evitativo» (avoidant). Ao recusar algumas de suas emoções — a vergonha tem a ver com essa recusa —, o eu se fragmenta. Afinal, há emoções que não foram processadas, e que vão encontrar maneiras de manifestar-se, como dores crônicas ou… desejos que parecem vir «do nada».

Pergunto-me se não podemos ver as formas negativas do desejo mimético — e digo negativas porque na mediação íntima há um desejo mimético, recíproco, e positivo — a partir de falhas da mediação íntima. Afinal, agostinianamente, podemos entender o mal como a privação de um bem que é devido — e todos nós precisamos de intimidade, cujo contrário é o subsolo dostoievskiano.

(Será que podemos dizer que um psicólogo é um profissional da mediação íntima? Eis uma questão que podemos discutir.)

2 A mediação externa

Girard distingue a mediação externa da interna por dois fatores. O primeiro é a «distância espiritual» entre modelo e imitador. Por exemplo: eu, Pedro, posso declarar que tento pensar como René Girard. Você pode tentar escrever como Camões. Pode imitar seu professor. Mas também pode querer imitar um influenciador da internet, querer comprar um curso que vai subitamente levar você para outro plano.

Não há vergonha em admitir a mediação externa, porque imitador e modelo estão muito distantes. Não há inveja, que é aquilo que temos mais vergonha de admitir, e disfarçamos, para proteger a nós mesmos, com expressões às vezes francamente ridículas como «inveja boa» ou «inveja branca».

Dois romances clássicos tratam dos males da mediação externa: Dom Quixote (sinopse: Alonso Quijano, fidalgo dos cafundós da Espanha, lê romances de cavalaria e decide agir como cavaleiro) e Madame Bovary (moça dos cafundós da França lê romances sentimentais e quer viver romances tórridos na ilha de Caras). É fácil notar que, para Quijano ou Bovary, um livro está longe de ser um instrumento que salva a alma e ainda traz Hauta Kurtura; o livro também pode nos desconectar da realidade imediata. Dom Quixote e Emma Bovary são versões populares do proverbial professor universitário que vive no mundo da Lua; apenas Quixote e Bovary manifestam seu mundo da lua na forma de cosplay.

Toda crítica conservadora da cultura de que me lembro também pode ser resumida (e não digo que esteja errada) a uma descrição da perda da mediação externa. Não temos mais Modelos. Não temos mais Ideais. Não temos mais um Centro. Temos essa aparente nostalgia do Sagrado. Na minha opinião, essa nostalgia do Sagrado esconde o desejo de intimidade. A intimidade vem antes da «Ordem»; não é a Ordem que possibilita a intimidade, porque a Ordem tem suas raízes na violência. A questão, como deve ficar mais claro depois, é que no colapso da Ordem ficamos diante de um dilema: ou resvalamos na rivalidade, ou damos um salto de fé para a intimidade.

Porém, a mediação externa não é o sinal seguro de um mundo ordenado; nosso mundo caótico contém grandes doses de mediação externa. Ela está presente na jovem estudante de artes que ficar horas no museu reproduzindo (isto é, se esforçando conscientemente para imitar!) os traços de um clássico da pintura em seu caderno. Essa mesma jovem também pode acompanhar um TikTok de uma influenciadora que ensina exercícios para, well, provocar o aumento dos glúteos; eis outra face da mediação externa.

O marketing digital é uma operação de mediação externa. Um de seus truques essenciais marketing digital é fazer você ficar vendo aquele Outro Mundo Maravilhoso em que o Blogueiro Vive com Suas Virtudes e com Sua Riqueza (quando o blogueiro mostra seu mundo, ele está «produzindo conteúdo») para, de vez em quando, dizer que a porta para esse mundo foi aberta, por apenas 12 vezes de R$ 99,99. O que está distante de repente ficará próximo, mas só desta vez, corra!

Para mim é claro que o prestígio do Outro Mundo é uma compensação miserável — mas, tantas vezes, a única que conseguimos imaginar — para a inocente totalidade que existe numa relação íntima. A Plenitude buscada no Outro Mundo é uma contrafação da intimidade, que, a partir de certo ponto, não tem preço e só pode ser dada de graça.

(Por isso, até, me pergunto: será que na verdade o psicólogo não é aquele que prepara o cliente para a intimidade com outra pessoa?)

E não esqueci de mencionar o segundo fator da mediação externa. Já até o mencionei, na verdade; mas deixei-o para agora porque ele serve de gancho para eu falar do tipo de mediação mais discutido por Girard, a mediação interna.

A mediação íntima é feita de proximidade e reverência, gerando uma reciprocidade positiva. A mediação externa é feita de distância e reverência: nela não há reciprocidade, ou só há, no máximo, uma reciprocidade imaginada. Eu aprendo com Camões, aprendo com os blogueiros, mas não ensino nada a eles. A mediação interna, porém, é feita de proximidade e irreverência. Sem a reverência, sem o pudor, duas pessoas que estão próximas, no mesmo plano, podem facilmente cair na reciprocidade violenta.

Antes de passar para ela, vale apenas recordar que aqui não tenho o menor interesse em simplificações do tipo isto bom, aquilo mau. A mediação externa pode ter efeitos muito negativos (você vira a Emma Bovary) ou muito positivos (ao imitar modelos, adquire conhecimentos, qualidades, e, por que não?, virtudes).

3 A mediação interna

Agora que já entreguei parte do jogo nos parágrafos anteriores, meu trabalho ficou facilitado. Na mediação interna, uma pessoa que você julga estar no mesmo nível que você ocupa, ao mesmo tempo, o papel de modelo e de rival, transformando-se no que Girard chama de «modelo-obstáculo».

Mas vamos com calma. A mediação interna está presente o tempo todo nas obras de ficção, das mais eruditas e sublimes às mais populares, por causa das suas inúmeras possibilidades dramáticas. Está presente na Bíblia também, logo no começo: Caim mata Abel por inveja. Porém, contudo, todavia, e entretanto, como falei, não admitimos a inveja, e não admitimos que nosso desejo nos foi na verdade sugerido por outra pessoa. Queremos crer que desejamos porque somos pessoas (ok, mais ou menos) racionais que têm alguma ideia do que é bom.

É muito fácil, para nós, ver a mediação interna nas outras pessoas, mas muito difícil enxergá-la em nós mesmos. Vemos que a Fulaninha imita a amiga, e talvez a amiga seja um pouco mais hábil em disfarçar que imita a Fulaninha (e este é, em parte, o enredo da tetralogia da Amiga genial); talvez a Fulaninha acabe se tornando tão hábil em esconder de si mesma o quanto imita a amiga que, volta e meia, ela fique horrorizada ao perceber o quanto a imita (ainda A amiga genial). E talvez a Fulaninha decida enfim escancarar a rivalidade e tente dar o golpe derradeiro nesse duelo silencioso (e essa é a justificativa explícita da narradora de A amiga genial).

As maneiras como a mediação interna produzem falsas personalidades parecem infinitas. Jean-Paul Sartre chamava uma delas de «má-fé», com a ressalva de que Sartre é anterior a Girard, e que Girard está em parte dando uma organizada em várias grandes intuições encontradas em vários grandes escritores. Mas enfim: a má-fé é a encenação de um personagem que você acha que os outros esperam ver. Sartre dá o exemplo do «garçom de Paris» cheio de malemolência, mas eu, que sou carioca, um playboy da Zona Sul, poderia encarnar o papel de playboy da Zona Sul: koooooéééé mermão, sente só como eu sô dishcoladu, peraê que eu vou pegá uma praia, aqui é Rio de Janeiro, porra!

Esse fenômeno parece de mediação externa (a conformidade com um ideal distante), mas é de mediação interna: é somente quando estou diante de outra pessoa que faço essa encenação, para impressioná-la, como se fosse uma estratégia na grande competição por algum destaque social. Nesse ponto, até, devo dizer que um pouquinho de estudo da mediação interna mostra o quanto a sociobiologia de botequim dos redpillados é involuntariamente cômica. Não há nada que já não estivesse num romance do século XIX, mas que foi muito bem resumido pelo título do romance de estreia de Michel Houellebecq em 1994: «Extensão do domínio da luta. Na mediação interna, em última instância, você não quer agradar; você quer vencer, isto é, impressionar, ofuscar, abalar, derrubar.

(Que alguém confunda essa mentalidade belicista com o cristianismo é algo que me desconcerta um pouco.)

A mediação interna também está presente na economia. Jean-Pierre Dupuy, a primeira pessoa a escrever (com Paul Dumouchel) um livro sobre a teoria mimética, L’Enfer des choses, nota que não existe diferença entre a «economia real» e o «mercado financeiro» na medida em que os dois se baseiam na especulação. O que é especular? É espelhar, refletir. Especulação, do latim speculum, espelho. Eu acho que você vai fazer X, por isso me antecipo ao seu movimento. Você pode fazer isso com um título financeiro ou com o preço de um serviço.

No começo de O vermelho e negro, publicado em 1830, o Sr. Sorel, pai do protagonista Julien Sorel, é abordado pelo prefeito da cidade. O prefeito quer que Julien seja preceptor dos seus filhos. O Sr. Sorel diz: ah, mas o Valenod também quer, ele paga X, o prefeito aí quanto paga? Ao criar a ficção de que há outros olhos apontados para Julien, o pai valoriza o passe do filho. Isto é o mercado. Os olhos do prefeito espelham os olhos do Valenod, e aumentam a aposta. E a aposta vai valer? No serviço comprado pelo prefeito, quanto valor há na entrega, quanto valor há no prestígio do professor? Será que esses valores não são de tipos diferentes? Mas não é tão fácil assim distingui-los…

Fica, então, o convite para quem quiser discutir isso melhor e entrar na teoria mimética. Muito obrigado!

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