Pedro Sette-Câmara

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117 Euphoria

117 Euphoria

Um seminário sobre a única série propriamente dostoievskiana

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set 09, 2024
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117 Euphoria
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Este mês, atendendo a uma sugestão que apareceu durante o cineclube girardiano de agosto, vamos discutir a única série propriamente dostoievskiana que já vi: Euphoria.

Como sempre, este texto não é um comercial. Ele vale em si, como texto. Mas, caso você queira discutir mais, aqui vão as informações:

Aulas: 11, 18, 25 de setembro + 02 de outubro de 2024. Discutiremos a primeira temporada e os dois episódios especiais entre a primeira e a segunda temporadas. (Você pode achá-los usando a ferramenta de busca do MAX.)

Horário: 20h às 22h (costumamos passar, a turma é empolgada).

Tem gravações? Sim, elas são disponibilizadas pelo Google Drive. É bom ter uma conta do Google.

Inscrições: PIX de R$180 (R$ 153 para assinantes pagantes da newsletter) para ps@pedrosette.com ou R$ 197,77 no cartão de crédito. O assinante pagante encontra um cupom de 15% de desconto ao fim da newsletter.

Estamos formando um grupo bem interessante. É um trabalho muito recompensador.

Vamos a Euphoria.

(E sim, estamos preparando A amiga genial.)

1 Desconhecer a origem das motivações

No papel de dominatrix com máscara de gatinha, uma colegial de 16, 17 anos começa a se relacionar pela internet com homens que desejam ser humilhados. Do ponto de vista da personagem, porque estou falando da Kat de Euphoria, isso faz parte de uma jornada que lhe traz tanto dinheiro quanto a autoconfiança que seu corpo «fora dos padrões» nunca lhe trouxe. A história tal como é contada, porém, nos oferece outro ponto de vista, que não escapa ao espectador mais atento: a «autoconfiança» de Kat na verdade consiste em ser tão ou mais «vadia» (slut) quanto as amigas que têm o corpo «padrão».

Talvez o leitor pense: apenas mais um caso de Maria Vai com as Outras. Nada mais adolescente. Além disso, alguma Maria Vai com as Outras admitirá (inclusive para si mesma!) ser uma Maria Vai com as Outras? Claro que não. Ela vai achar que é original, única, que apenas deseja o que é realmente desejável. Porém, daí a virar dominatrix na internet não há uma distância? E se pensarmos que essa experiência destrói de vez a capacidade de Kat de acreditar que outro homem pode simplesmente gostar dela? Que ela terá uma série de experiências sexuais sem nenhum prazer? Afinal, uma simples Maria Vai com as Outras ainda seria capaz de ter algum prazer com aquilo que enfim obteve…

Kat no início da carreira como Kitten Kween

O quarterback do time de futebol americano da escola de Kat é Nate Jacobs, cujo caso é similar ao de Kat. O pai de Nate, Cal Jacobs, é um gay no armário: para todos, é um empresário de sucesso, pai exemplar. Porém, volta e meia ele tem seus encontros às escondidas — encontros esses que ele filma. Esses filmes serão encontrados por Nate desde bem cedo, constituindo uma verdadeira formação do imaginário. Logo que Euphoria começa, uma das pessoas com que Cal se encontra é Jules, colega de Nate. Logo Nate assistirá ao filme. Logo, também, vai encontrar Jules num aplicativo para gays e, usando outro nome, iniciar um relacionamento virtual com ela. Porém, é claro, ele vai acreditar que seu relacionamento com Jules é lindo e espontâneo.

Esse esquema — querer ser como alguém que está muito próximo, que é fonte de humilhação, mas ignorar por completo essa verdade elementar a respeito de si mesmo, e ainda, em certos casos, ter um ódio profundo e consciente do seu modelo — é puro Dostoiévski.

É esse esquema que distingue Euphoria de outras séries. Não são os temas pesados. Muitas outras séries têm temas pesados. Até onde sei, porém, apenas uma série pode se dizer «dostoievskiana»: Euphoria.

2 A história do desejo

René Girard escreveu seu Mentira romântica e verdade romanesca como uma «história do desejo», mostrando a sucessão de mundos psicológicos ou espirituais retratada em Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust, e Dostoiévski (Proust é cronologicamente posterior a Dostoiévski, mas espiritualmente anterior).

Se fôssemos reescrever a história do desejo de Mentira romântica e verdade romanesca usando apenas séries, um antecedente de Euphoria provavelmente seria Gossip Girl, que corresponderia a um mundo com elementos de Stendhal e de Proust. Ali os temas também podem ser pesados, mas os personagens não estão tão distantes de si mesmos quanto os personagens de Euphoria. Eles têm modelos claros, têm rivais, e, quando a mesma pessoa é para eles um modelo e um rival, eles sabem disso. Por isso, até, Gossip Girl é algo mais confortável de assistir: você não precisa prestar tanta atenção assim para saber qual é a verdadeira motivação de cada personagem, nem qual o efeito que cada uma de suas ações tem na alma deles.

Blair Waldorf, por exemplo, sabe muito bem que tem dois tipos de modelos: aqueles que estão distantes, e que ela quer imitar de qualquer jeito, como Jacqueline Kennedy (porque Blair sabe quem quer ser: uma empresária de sucesso e mulher exemplar da alta sociedade), e o modelo próximo, a amiga Serena van der Woodsen. Serena é a dona dos olhares que Blair gostaria de ter para si. Ela tem ciúme, e sabe que tem ciúme.

Blair Waldorf veio resgatar os valores da família tradicional

A Kat de Euphoria, por outro lado, não pode admitir para si que inicia a vida sexual apenas para provar que é uma verdadeira vadia e poder igualar-se às amigas. Não pode contar para ninguém que é uma dominatrix virtual porque, sendo menor de idade, está cometendo um crime. Não pode conversar consigo própria a respeito do desconforto que sente consigo mesma. Não consegue entender, também, por que tem tantas dificuldades para aceitar que o colega Ethan simplesmente goste dela. Kat tornou-se incapaz de relaxar, de entregar-se, e só enxerga um mundo de vadias e virgens, em que você ou faz ou não faz sexo, e, se faz, o negócio é rápido e objetivo.

3 O prazer

Não, até, que Kat tenha algum prazer. Esse é um tema que realmente me interessa e que pretendo discutir mais longamente no seminário. Girard o discute em Mentira romântica e verdade romanesca (1 — pus uma nota de rodapé com o trecho depois do cupom de desconto). Foram-se os bons tempos em que a Igreja e os conservadores podiam alertar os adolescentes para os riscos de prazeres ilícitos; foram-se os prazeres, ficou apenas a ilicitude, e agora não definida pela moral religiosa, mas sim pelo código penal. Porque impressiona, de fato, que praticamente todas as cenas de sexo de Euphoria em que parece haver alguma insinuação de prazer se passam apenas na fantasia dos personagens.

Isso pode ser diretamente correlacionado com o estado de humilhação perpétua — sim, o famoso «subsolo» — em que eles vivem. Kat virar dominatrix é apenas uma ritualização, uma teatralização disso. Não por acaso, Nate vive uma relação abusiva — em que ele é o abusador — com sua namorada Maddy. Para que haja prazer, e nem falo apenas de prazer sexual, você precisa estar relaxado, vulnerável, disposto a ser agradado e também a agradar. O prazer tem algo de horizontal, ele está em ofertar e em receber, em entregar-se.

Isso é impossível quando você se sente humilhado e, por sentir-se humilhado, envergonhado, precisa esconder a vergonha e ainda por cima dar a entender que está sempre um passo à frente de todo mundo. Por isso Jules, a menina trans, não é apenas trans: é alguém que pretende, nas suas próprias palavras, «subjugar a feminilidade» (conquer femininity). Ela não quer apenas ser mulher, mas ser algo que ninguém será capaz de definir — e que, por isso mesmo, é definido pela rivalidade. Quem é ela? Ela é quem você não pensa que ela é.

4 Os personagens que precisam de psicoterapia

Enquanto eu pensava nisso tudo, me dei conta de que os personagens dostoievskianos (o que, por supuesto, inclui os de Euphoria; não falo apenas dos romances de Dostoiévski) são, por excelência, os personagens que precisam de psicoterapia. Talvez não por acaso eles tenham surgido pouco antes de Freud inventar a psicanálise.

Afinal, eles desconhecem a origem de seus desejos. Têm comportamentos compulsivos. Nem sequer ousam se perguntar se não deveriam sentir algum prazer sexual. Rue, a grande protagonista, é viciada em opiáceos. Kat, Nate… Não preciso nem falar nada.

Nate Jacobs, o psicopata dos pescotapas

Em Mentira romântica e verdade romanesca, Girard tenta descrever a técnica que Dostoiévski inventou para revelar a estrutura do desejo desse tipo de personagem. Seria inútil representar os pensamentos deles, já que eles mentem para si mesmos com toda a sinceridade. (Pergunte a Kat se na verdade ela só quer ser ainda mais vadia do que ela acha que as amigas são.) A revelação do desejo teria de ser feita por meio da representação de ações numa longa duração, a duração necessária para que os contrastes entre tempos diferentes esclarecessem a verdade.

É por isso que quase todos os episódios de Euphoria falam da infância dos personagens. (Mais um ponto para a psicoterapia…) Mas não só: a confusão é tão grande que dois dos personagens principais, Rue e Jules, têm longas conversas nos dois episódios especiais entre as duas primeiras temporadas da série. Jules literalmente no consultório de uma psicóloga; Rue com seu padrinho (sponsor) dos Narcóticos Anônimos, o que traz um contexto algo terapêutico ou ao menos de «mentoria», para usar uma palavra da moda.

Numa terapia em sentido estrito, talvez não seja necessário que cada pessoa se depare com a verdade de seu desejo; ela pode apenas precisar de uma mudança de vida. Numa obra de arte, porém, aquilo que nos é oferecido é justamente o contraste entre pontos de vista. De um lado, o personagem que desconhece a si mesmo. De outro, a narração que tenta revelar para o leitor ou espectador aquilo que o personagem nem cogita enxergar.

Por isso, em sentido lato, a atenção a certas obras de arte pode ser uma terapia. A pergunta que fica para nós, porém, não é tão distante daquela que poderíamos fazer aos personagens. Será que, como Kat, como Nate, só conseguimos nos relacionar com os outros se sentimos que detemos o poder, ainda que isso nos custe o prazer — incluindo nisso até os prazeres mais básicos da convivência?

CUPOM DE DESCONTO PARA O SEMINÁRIO

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