Pedro Sette-Câmara

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119 «A amiga genial»

119 «A amiga genial»

Um curso sobre a «tretalogia» de Elena Ferrante (sim, «tretalogia»)

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set 26, 2024
∙ Pago
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119 «A amiga genial»
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Aqui está o link para você se inscrever no curso: hotm.art/aamigagenial. Teremos aulas pré-gravadas e encontros pelo Google Meet (sendo o primeiro deles no sábado, 5 de outubro).

O curso contará com a participação de minha esposa, Priscila Catão.

O assinante pagante da newsletter encontra um cupom de desconto, válido até as 23h59 de 29/09, ao final do texto.

Uma das melhores coisas da «Amiga genial» é que você nem precisa vender o livro. É mais razoável alertar contra o livro: cuidado, você vai começar a ler, e não vai conseguir fazer mais nada na vida

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Só me lembro que estava morando na rua Tonelero, no apartamento colado no morro, com quintal no sétimo andar, quando comecei a ler A amiga genial, de Elena Ferrante. Eu já tinha feito o mestrado tentando entender melhor a literatura que vendia, tentando entender como a literatura seduzia o leitor. Aliás, uso o verbo «seduzir» de propósito: por que um livro «pega» um leitor? Por causa dessa pergunta, que nasceu até mesmo antes do mestrado, cheguei a ler 62% do primeiro volume de Fifty Shades of Grey (foi até onde aguentei, e dou a porcentagem porque li no Kindle; afinal, eu jamais permitiria que alguém me visse no metrô lendo esse livro em papel, obrigando-me a explicar que era tudo em nome da ciência), mas também obras mais respeitáveis como A elegância do ouriço, de Muriel Barbery.

Sei que existem livros que exigem pouco do leitor, e livros que exigem muito. Esaú e Jacó, de Machado de Assis, exige que você componha um livro paralelo na cabeça para compará-lo com o livro que tem diante dos olhos e assim entender as ironias do enredo. O Dostoiévski pós-Subsolo exige que você preste atenção em tudo e seja capaz de fazer diversas inferências quanto ao comportamento das personagens. Mas Fifty Shades of Grey não exige nada, ou talvez exija apenas que você tenha abdicado, ao menos um pouco, da sua vontade de prestar atenção.

Com essa introdução, explicito o princípio bastante simples que me leva a dizer que um livro é «melhor» do que outro: quanto mais atenção você der ao livro, mais sua atenção será recompensada. Assim como você pode tomar um grande vinho e ir descobrindo sabores novos à medida que o vinho tem contato com o ar, você também pode reler um livro e notar algo que não tinha notado antes. A grande obra é a «fonte que nunca seca», the gift that keeps on giving.

Agora, nada impede que, desde a primeira leitura, essa grande obra seja eletrizante, talvez até assumindo o disfarce de um livro bem popularzão, melodramático, cheio de golpes baixos. A «tetralogia napolitana» merece até ser chamada de tretalogia, que seria um belo neologismo com o qual responderíamos ao adjetivo afrancesado «rocambolesco». E ressalto que, no espírito do folhetim, quando me perguntavam sobre o livro, eu dizia: «É um belo romanção realista do século XIX, viciante, muito divertido.»

Porém… A tretalogia não me saía da cabeça, e logo comecei a relê-la.

Minha esposa Priscila Catão traduziu o livro que Lila e Lenu leem juntas: Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Priscila gravou para o curso um comentário sobre a relação entre Mulherzinhas e A amiga genial

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Para quem se interessa pela teoria mimética, A amiga genial é um prato cheio. Não só pelo motivo óbvio, isto é, porque temos duas amigas imitando-se e rivalizando uma com a outra, mas porque essa relação dura décadas. É o primeiro romance que conheço que traz uma representação numa escala mais próxima da escala de uma vida humana, e que usa a imitação e a rivalidade para mostrar a «formação» — entre aspas porque a própria Elena Ferrante diz, em As margens e o ditado, que «o romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar» — de Lenu, a narradora e protagonista, e de Lila, protagonista e talvez mais do que protagonista.

Mais ainda, assim como O vermelho e o negro, de Stendhal, os livros da tetralogia da Amiga genial são romances que ensinam a ler romances. Eles pegam o leitor pela mão, deixam tudo bem explicadinho no começo, nos deixam saber exatamente por que cada personagem faz o que faz, e, pouco a pouco, vão soltando a mão do leitor. O contraste entre essa infância com motivações mais explícitas e fases posteriores com motivações mais implícitas, menos claras para os personagens, apenas revela a estrutura das nossas vidas, em que vamos — para usar a expressão de Dostoiévski — mentindo para nós mesmos cada vez mais. Ser como Lila ou como Lenu é ter a sorte de ter um amigo que volta e meia nos permite dar aquele «confere», aquela sacudida que nos lembra que desejamos nos ver refletidos nos olhos de alguém.

A infância é a fase da vida em que somos mais evidentemente miméticos. As pessoas com filhos pequenos, ao vê-los disputando os mesmos brinquedos, repetindo tudo o que veem, vêm falar comigo como se tivessem acabado de encontrar a comprovação empírica de toda a teoria de René Girard. Na Amiga genial, a criança Lenu, nossa narradora, diz na lata para Lila, sua amiga: «O que você faz, eu faço.» A mesma Lenu conta que Lila ia brincar de boneca num canto, e ela ia para outro, com sua própria boneca, repetindo o que Lila dizia com algumas pequenas variações… Já ia, portanto, dando aquela disfarçada na imitação, ainda tosca, antes de ir aprendendo a disfarçá-la com a maestria de uma verdadeira adulta.

Disfarçar a imitação (Dostoiévski: mentir para nós mesmos…) que é óbvia na criança tem o propósito de manter a ilusão de que «eu sou eu mesmo, autenticamente eu, apenas eu e mais ninguém; eu sou senhor de mim mesmo, não sou afetado pelas rivalidades, “o que vem de baixo não me atinge”, e farei o que for necessário para manter a conexão com os outros enquanto preservo minha “individualidade”».

Por isso, com a simplicidade de um espírito clássico, A amiga genial narra esse processo espaçando a imitação e deixando de chamar a atenção para ela, fazendo a vida prosseguir «normalmente». Porém, ao longo dessa vida normal, a imitação vai reaparecendo e servindo como chave explicativa daquilo que parecia apenas espontâneo. É o «confere» que mencionei há pouco. Lila não pode continuar na escola — na época em que se passa o romance, a escolarização de adolescentes não era obrigatória na Itália — e Lenu começa a aprender latim. Lila um dia pergunta: «Como é o latim?», e logo depois desaparece, fica o verão inteiro sem dar as caras. A vida segue. Quando Lila reaparece, Lenu está penando com o latim, e é Lila quem vai ensinar-lhe a regra de tradução que eu mesmo aprendi na faculdade (de grego): primeiro você procura o verbo, depois o sujeito do verbo… Eis que Lenu começa a progredir no latim.

Mais espaçadamente, Lenu, já na universidade, escreve seu primeiro livro e só depois se dá conta de tinha sido movida pelo livro que Lila escrevera na infância. Como no caso do latim, ela percebe que a amiga estava à frente. As duas, também, como numa comédia shakespeariana, se interessam pelo mesmo Nino Sarratore…

Lenu, calejada, chega inclusive a explicitar outra vez a rivalidade (que também é imitação…) no próprio ato de escrever A amiga genial. No prólogo do livro, o leitor fica sabendo que Lila desapareceu. (Ou, como dizia a canção: «Sumiu. Desapareceu. Escafedeu-se.») Lenu recorda que Lila já tinha anunciado a vontade de sumir sem deixar nenhum vestígio. Por isso mesmo é que Lenu decide fazer então Lila aparecer, escrevendo todas as suas lembranças, escrevendo toda a sua história.

Lenu, exibindo o look Berlim Oriental - 1979, e Lila, meio bossa nova e rock’n’roll, esperam você no curso da Amiga genial (dica: a amiga genial não é a de óculos)

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Um estudante de Letras, como eu, não deixa de notar que parece haver uma brincadeira simples no título A amiga genial: quem é a amiga genial? É Lila? Mas não é também Lenu, a narradora? A ambiguidade que «faz pensar» é um truque tão fácil quanto irresistível para quem deseja parecer inteligente.

Não é o caso de Elena Ferrante, claro. Creio que a amiga genial é mesmo Lila, ainda que a própria Lila diga a Lenu no primeiro volume: «você é a minha amiga genial».

Essa é a hipótese que pretendo defender durante o curso da Amiga genial. Lenu tem a grande virtude de confessar suas invejas, mas Lila viveu-as mais intensamente, sem escondê-las de si mesma — e por isso mesmo fez todas as besteiras que podia de uma vez, de modo mais intenso e concentrado. No terceiro volume, Lila passa por aquilo que René Girard chama de «conversão romanesca», que é uma desistência do desejo, e a descoberta de que você é igual às pessoas que você afetava desprezar. Lila quis ir contra e contra todos, e se deu mal. Quis viver seus sonhos, e se deu mal. Ela viu aquilo que poucas pessoas veem: o desejo não traz felicidade.

No terceiro episódio da quarta temporada da série baseada no romance que está sendo exibida pela HBO, Lila, com 36 anos, pergunta a Lenu, com a mesma idade: «Você então está morando com vista para o mar? Que bom, o mar só é bonito mesmo à distância. Na praia só tem xixi, gente gritando.» A fala parece trair uma certa amargura, mas não é uma amargura que defina a vida de Lila, e sim a amargura de quem está vendo, precisamente, que a amiga ainda vive de ilusões.

Quem já leu o livro sabe do que estou falando. Quem já leu o livro sabe que o «sai dessa, Lenu!» é que não sai da cabeça do leitor. Lila foi até o outro lado dos sonhos da infância e da adolescência, e sabe o quanto estava motivada pela rivalidade, pelo desejo de suplantar a amiga, de ir além da violência do bairro. Lenu não apenas ficou travada na juventude, como um problema que vai lentamente se agravando, como nem sequer entendeu o que houve com Lila.

Aí, até, está um dos grandes prazeres da leitura do romance. A narração de Lenu é suficiente para que interpretemos aquilo que a própria Lenu não entende. Mas a própria Lenu — aqui a narradora se confunde com a autora Elena Ferrante — vai nos dando os subsídios para entender o que ela mesma não entende. Leia Lenu com atenção, e você verá o que Lenu não viu.

Talvez até por isso Lila tenha saído de cena. Os olhos que um dia a refletiram já não a refletem mais. Ela foi perdendo a possibilidade de dar aquele mesmo «confere» que Lenu tenta recuperar escrevendo 1500 páginas viciantes e eletrizantes. É o que temos. É o caminho que temos, o único caminho que temos, para tentarmos chegar até Lila e até esse «outro lado do desejo» ainda em vida, e, aliás, com décadas de vida pela frente.

É uma trajetória que merece ser estudada. Uma grande trajetória cristã, ainda que sem nenhum conteúdo explicitamente religioso. Uma trajetória que certamente vale um curso e alguns encontros, para nós que temos nossas Lilas e até para nós que não temos.

Caso o leitor não saiba, essas imagens são da série My Brilliant Friend, disponível na HBO — a quarta e última temporada está sendo exibida agora!

CUPOM PARA ASSINANTES (VÁLIDO ATÉ AS 23H59 DE 27/09)

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